13.2.09

Narcolepsia do Amor

Escreve Alice Vieira: “Nós somos mesmo assim: amar, amar de verdade, só amamos os mortos e os desamparados”. Isto vem precisamente ao encontro de uma ideia minha, mais ou menos antiga e fruto da observação dos factos e das pessoas. A de que não amamos a fundo perdido, muito pelo contrário, legislamos sobre todos os pormenores, atribuímo-nos cláusulas de salvaguarda e de excepção just in case, e depois vamos lá então ver isto! Ora o Homem é um ser infinitamente mais dotado de sensibilidade, emoção e inteligência, do que aquilo que se permite extravasar. São os condicionalismos sociais, é o politicamente correcto, o medo e o preconceito, a quotização pessoal, e uma série de pequenos entraves lógicos e racionais mas nem sempre sensatos.

Não nascemos para sofrer por mais que nos sintamos trucidados por velhos ideais, políticas asfixiantes ou salários reduzidos. Não nascemos para sofrer, por mais que não nos possamos estender eternamente nas ilhas Seichelles ou nas Maldivas, alternando entre o lazer e o trabalho muito mais do que costumamos fazer. Não nascemos para sofrer, por mais que a fonte que jorra de dentro de nós impluda continuamente criando taras e idiossincrasias de quem, afinal, por condicionantes exógenas não pode amar.

Tornamo-nos calmos, tranquilos, adormecidos, qual doente que à custa de uns sedativos, vai levando uma vida dita “normal”! Certo é que o crescimento adultiza, que sofrer é crescer, e que o sofrimento deve ser olhado como uma escola, uma aprendizagem, e não um castigo dos céus. Dar primazia à razão em detrimento do sentimento, valorizar o social relegando o pessoal, não me parece inteligente na óptica da realização do ser humano.

Tentamos optimizar demasiado o amor e o dinheiro, o trabalho e o lazer, as nossas qualidades e as potencialidades de terceiros, e esquecemo-nos que é próprio da condição humana conviver com o erro e com o lado menos belo ou menos agradável, e porventura mais penoso. É a velha história do príncipe encantado, mas esquecemo-nos que o príncipe, nas sua versões masculina e feminina, é afinal um ser humano que se chateia consigo mesmo e com os outros, connosco e com o mundo! Que o príncipe encantado ou o amor com que sonhámos, mais não é do que a visão dourada de um homem ou de uma mulher feitos de papel. O exterior gasta-se, perde-se, dilui-se no tempo, pelo que só restará a essência, aquela que se depura com os anos, caso não a tenhamos percebido melhor antes. E é essa caixa preta que resiste a tudo e que guarda consigo o que temos para oferecer e para receber, viver e partilhar; que conta não o invólucro ou as fantasias sociais, os chás de ocasião ou um viver condenado a existir por um masoquista imperativo social.

Também um dia o tal príncipe encantado sucumbirá ao poder do tempo, e toda a sua beleza física que tanto coração preocupou, desaparecerá, e não passará de um ser rugoso, porventura feio e fisicamente decrépito. Todo o Homem tem de morrer, mas mesmo quando formos parecidos com as folhas douradas das árvores prestes a despedirem-se do tronco, seremos ainda todo o fulgor que nos caracterizou na entrega, seremos ainda o esplendor da identificação mútua: mãos que se entregam, sentimentos que falam, olhos que percebem, rabugices que escapam ao tempo, mas príncipes encantados e perpétuos na essência, porque soubemos ver para além do castelo.

É assim que voltamos ao presente, ao nosso hoje! Sempre que não amamos é porque a razão interferiu na escolha. O amor, quando verdadeiramente sentido, envolve a pessoa num véu que outros não enxergam, mas que nos liga ao outro de forma única e singular. E só os motivos exteriores à vontade que impeçam uma eventual união, devem ser os espinhos no roseiral que nos levam a perceber a vida, mas não para nos determos nele lambendo as feridas e vivendo hipotecados por uma relação ilusória.

Os espinhos fazem parte da rosa, mas não estão lá para nos picarmos propositadamente. Devemos apenas procurar outro jardim ou outro canteiro, ainda que com flores sem espinhos mas com abelhas por dentro. Cabe-nos gerir o amor como a primeira e última ratio do viver, deixando-nos de efabulações humanas alienantes, já que transferimos para um ideal o respeito que devemos a nós mesmos.

O príncipe encantado, ou a bela adormecida, que esperem também por nós! É que, por mais que nos custe (e custa), viver implica a sabedoria da inocência numa espera ou num encontro que não nos cabe determinar.