24.3.09

O Jardineiro


Correu lacrimejante. Só o vento nocturno lhe afagava o rosto. Mas porquê? Porque havia as coisas de ser assim? Sempre. Sempre. Sempre. E quando de repente, sem aviso prévio, encontrara materializada a alma num rosto e num ser, os dias brilharam e tudo parecia mentira. Mas não. Estava ali. De mãos dadas. De coração entregue. E fugiram para jardins que não supunham poder visitar. Pelo menos tão cedo. Conheceram cheiros e cores e aquela entrega que só a alma tem o privilégio de dar ou receber. Muitas vezes as duas coisas. Interrogações anacrónicas num painel de vida que subitamente se enchera como um aluvião de sentimentos. Em catadupa. Os contrastes mesquinhos da vida obstaculizavam mais tempo, maior serenidade, mas o essencial estava lá, botões cuja flor se adivinhava simples mas bela.

O tempo passou. Não muito. E uma entrega era paixão. Mas a outra devia ser amor. Tinha de ser amor. Pela primeira vez pensou realmente o que era o amor. O querer bem? O estar presente mesmo na ausência que tentavam encurtar? O deixar-se ir sem procurar mais nada nem ninguém, porque ali, mesmo ao lado, se encontrava materializada uma entrega mútua?

O tempo foi célere. Mas enganou. Um dia, muitos dias depois, os deuses colocaram a cidade à disposição dos dois. Aquela cidade que estava interditada por quilómetros de desejo e vontade de partilha, estava agora ali. Pronta a ser um palco continuado de um jardim cujo perfume se podia exalar pela atmosfera citadina, como um jardim botânico no meio da cidade, ou uma herdade feita de silêncio. E de luz. Pelo meio deste interregno, entre os interpolados encontros, uma mácula aparecera. Devagar, como se o lado oculto de uma personalidade ousasse ser mais ele. Reclamando para si razões que a partilha rejeitava. E mais razões. Tantas e tão cegas até partir o cristal da entrega, porque duvidosos perfumes se tinham instalado, qual flor que encapotadamente colorida faz adormecer quem a cheira.
De passo em passo, de razão em razão, a rosa necessitou de um jardineiro. Do mesmo, presumia-se. Mas cada vez mais o jardineiro reclamava razões que as rosas não entendem. Até que um dia, com o sopro do mar e da lua que em tempos fora madrinha, o jardineiro leu a cartilha de um botânico e quis ser como ele. Daqui colher flores. Dali saber-lhe os nomes. Mas cuidando em construir uma estufa. Segura. Inabalável. Uma questão de tempo.
Então a rosa sentiu-o. Tocou-lhe sorridente lembrando o colo que o jardineiro lhe dava. Mas ele recusou. Invocou razões. Sempre razões. Mas desta vez era diferente. Pediu-lhe se o acompanhava a uma exposição botânica. Seria apenas uma flor de experiência. Arrancar-lhe-ia apenas uma ou duas pétalas. E recoloca-la-ia no seu lugar. Um vaso. Modesto. Simples. Que antes fora um altar. A rosa não percebeu. Queria apenas sentir de novo o cuidado e o carinho. E quem sabe, pertencer-lhe sempre. Mas foi quando o jardineiro, de fito no mundo e na diversidade de espécies, deslumbrado com as coisas que o campo não oferecia, lhe disse que não. Não virás comigo, mas poderás estar sempre que quiseres. Sabes, é que encontrei outras flores. Mais fortes, capazes de serem transplantadas, e tu apenas me dás uma parte.
A rosa manteve a cor. Lembrou-se que havia ajudado o jardineiro a livrar-se dos espinhos da vida. Lembrou-se de como quando conhecera o jardineiro. Débil, vacilante, à beira de se atirar a um rio, desacreditando a existência das flores. Retirou-o pelas palavras e pela delicadeza da entrega. Noites, madrugas e tardes silentes. Calorosas. E ele parecera não apenas ter esquecido tudo isso como agora usa-lo contra ela. Mas não. Nunca nada é por mal.
Então a rosa esfumou-se por entre transeuntes, como se fosse uma flor desbaratada de um perfume que não guardou. O jardineiro optara por uma rosa da cidade, cores vibrantes, talvez cinzelada por tintas excêntricas, como as rosas azuis apenas porque dão mais cor.
Porque chora esta rosa? - perguntou alguém quando a viu num vaso de uma florista. E a florista respondeu: Ah, provavelmente é daquelas que não se adaptam a tudo. Temos de a deitar fora.
E jogada no canto das suas pétalas, confundiu-se com um lírio do campo. E aí ficou. Até o Sol amarelecer as suas folhas.