10.8.09

HÁ UM HOMEM PREGADO NA CRUZ

Salvador Dali

Aceitar a nossa história, é saber ser Homem. Cristo fê-lo, independentemente das simpatias ou adversidades que a sua postura pudesse causar. Mas soube ser pedagógico. Firme, mas suave. Compreendeu mais do que ninguém a psicologia humana, e foi assim que não se expôs sem primeiro reflectir. Um revolucionário arranca as palavras do seu interior como quem atira pedras. Um revoltado maldiz o mundo. Mas Cristo soube fazer a denúncia do achincalhamento da dignidade humana sem se render aos poderes instituídos, políticos e religiosos (como os essénios, os fariseus, os zelotes...) embora também sem os desrespeitar.

Geraram-se grupos à volta de Jesus que o apoiavam como o libertador de querelas políticas, mas Nosso Senhor sabia ler acima das minudências e manigâncias. Anuncia o Evangelho que é a Boa Nova, que não somos apenas animais mas seres humanos com o toque divino, sem no entanto desrespeitar a hierarquia existente ou convidar à insurreição. Mas não pactua: denuncia. E soube denunciar sem causar ainda mais mossas, com frontalidade e coerência ao ponto de perder amigos, como previra com a negação de Pedro ou a traição de Judas!

A História da Humanidade tem tanto de heroísmo como de cobardia. São as causas que nos interpelam de uma forma particular, que nos movem, mas também muito daquilo que é exterior ao nosso núcleo privado de relações, simplesmente deixamos que aconteça. Temos muito mais poder do que aquele que usamos. Socializamo-nos até quase perdermos a identidade própria, ou passarmos a ver os outros pela bitola social instituída. E tudo isto pela recompensa do status, do poder e do dinheiro. Também a Cristo quiseram oferecer o mundo, mas negou a glória que tanto nos impressiona.

Certo é que serpenteamos entre a ética e a coisificação; entre o amor e o poder; mas é quando entra a assertividade, aquela “graça” de nos sentirmos bem connosco mesmos sem que a nossa consciência seja cúmplice de um mal que, afinal, detestamos. Não podemos estagnar numa apreensão de conceitos estáticos; antes, repensar e actualizar as nossas decisões à luz de um amadurecimento gradual, contínuo, de discernimento na humildade, na fé e na objectividade de tudo o que nos cerca. Porém, nada disto poderia ser feito sem uma paragem no nosso tempo interior! Não para nos determos nele, mas para avançar cada vez mais fortes e conscientes na vivência cristã do amor, que paradoxalmente é o corolário do sacrifício.

É desta forma que devemos pensar Deus à luz de tanto ateísmo e de talvez assim percebermos a “solidão de Cristo”, ou se preferirem, a “humildade de Deus”. De compreendermos como afinal é fácil entender as atitudes de Jesus como mestre, pedagogo, de disciplina e compaixão, mas sobretudo de amor e sacrifício por cada um de nós. De compreendermos o mistério da Cruz que é afinal o mistério do Amor, e toda a trama política, religiosa e social que o envolveu. De olhar para o Crucificado despojados da nossa soberba intelectual e do nosso ostensivo ateísmo, como quem passa um certificado de menoridade intelectual a quem crê! E olhar silentemente a figura de Jesus sem efervescências racionais que impedem reflectir com abertura!

Um amigo meu que tem alma de poeta e coração de carne, e vive na ânsia do eterno, na contagiante alegria do momento, e com alguma apreensão dos desígnios de Deus a seu respeito, escreveu-me há uns tempos uma carta onde citava Shakespeare deste modo: “Deus conserta um coração partido se lhe dermos todos os pedaços”.

Subir à montanha! Há que subir à montanha. A montanha do silêncio. Do silêncio sem pensar, sem discutir, sem pretender... e assim talvez revermos Cristo ausente da nossa auto-suficiência, do nosso horizonte falho de humildade, e do nosso desdém pelo divino. E desta forma, em vez de o voltarmos a crucificar pela cobardia da nossa ignorância, devíamos tentar antes fazer um espaço dentro de nós, para que nos ensinasse, nos falasse, nos calasse, nos amasse ainda mais, e podermos então simplesmente dizer: “Aqui estou”!

Diz uma história que certo dia um homem ia a passar quando viu Cristo crucificado na cruz. Ficou tão entristecido que o quis ajudar. “Deixa-me tirar-te daí” – pediu o homem. Mas Jesus respondeu-lhe: “Não! Vai antes pelo mundo e diz aos homens que encontrares, que há um homem pregado na cruz”...