20.2.10

PROZAC, BARULHO E ILUSÃO


Há uma falha no Tempo. Há uma falha em mim. São muitos facebooks, muitos twitters, muitos posts sobre nada, muitas quesilias encapotadas, muitos telemóveis, ipod's, portáteis e televisões. Muitas luzes de néon, muitos bares e cafés, muitas lojas sem nada, muito ruído humano. Muitas palavras debitadas de cor, muitos clichés, muita superficialidade. Quem é quem, onde e como? Faltam os coches da sinceridade e nobreza de espírito em vez dos bólides topos de gama. Falta o significado do gesto, de cada gesto, em vez dos rituais cegos e automáticos de cumprimentos e beijinhos e olás sem cumplicidade, encanto, ou delicadeza. Vivemos amassados por tanta informação, por livros e jornais, revistas e televisões, rádios e blogues. Desacreditam-se os valores genuínos que não mudam de pessoa para pessoa na sua essência. Cada um é que os rapta por falta de delicadeza própria. E de razão. Vivemos anestesiados no poder tecnológico, no bramir do dinheiro, na angústia do futuro e de uma velhice confortável quando ainda mal sabemos o que é a comunicação da alma. Falamos sobre tudo mas não sabemos nada. Somos ignorantes da nossa própria condição. Habituámo-nos à personagem e não à pessoa. Ostentamos cobardemente humildade e serviço, bondade e modéstia. Colocamo-las na lapela do ego mesmo quando não nos apercebemos logo disso, até nos confundirmos com o que desejaríamos ser e passamos mesmo a ser. A sinceridade passa a irrefutável certeza, o amor a orgulho, a ideia que fazemos de algo a convencimento, e rasgamos as estrelas até perdermos a mão no Infinito onde nem a noite nem a luz nem nada nos abre os olhos para a obesidade de seres informados mas pouco formados.

Tomamos Prozac, aspiramos pela idade económica, submergimos no alguidar da matança social (onde vemos corrupção, mentira, desonestidade, conluios e arrogância como naturais numa sociedade de futuro mas pouco civilizada) o pulsar do coração pela entrega oblativa, incondicional, sem freios nem medos, sem receios nem taras. Vivemos numa sociedade de taras, de sociopatas, de emergência do ruído, de palmadinhas nas costas quando nos identificamos. Vivemos num Tempo onde juristas e  psiquiatras são imprescindíveis. Não vendemos chocolate, como no filme. Nem emanamos inocência, como no Fabuloso Destino de Amélie. Não nos entregamos como em Thelma e Louise, nem supomos a dúvida como em Kate e Leopoldo. Sabemos de cor as lições do Principezinho, o "Amigo" de Vinicius de Moraes, ou algumas frases soltas do Dalai Lama. Comentamo-nos uns aos outros e falamos rasgada e abertamente em cafés e encontros programados porque não há tempo para nada como no coelho da Alice no País das Maravilhas. Extasiamo-nos com efeitos 3D do Avatar mas conformamo-nos com uma história que já é nossa. Patetizamos quem caminhe em sinal contrário, acreditamos no que nos dizem ao ouvido como sereias encantadas, somos cordiais mas pouco autênticos, julgamos sem receios e agimos em conformidade. Há um remédio em que ninguém já acredita e diz ser uma lenda. Porque os homens tornaram-se pouco pessoas, e com o passar do tempo as denúncias do jornal Sol, como antes do Independente, do Jornal de Sexta-Feira ou... se tornaram simples mentiras para uns, difamações para outros, matéria a defender por algumas consciências... pouca incredulidade!

Sim, falta-nos conduzir o Tempo e não de ser levados animalescamente por ele. Falta-nos soltar as palavras belas e inconfundíveis como se fossem, pequenas fontes de água fresca e não uma sucessão verborreica a imitar um esgoto que a espaços convulsos deita água suja ao mar. Falta o Encontro. Aquele em que saimos de nos. O Encontro que não é escravo do tempo nem da razão nem dos interesses dos amigos. Falta voltar ao ponto onde uma bissectriz turvou os valores e desfazendo a vida a muita gente tornou-as rancorosas e odiosas sob capas de imensa honestidade. Projectam nos outros e no mundo os males que padeceram, qual Cristo pregado na Cruz com alguns pregos da nossa raiva. Se é Deus, não devia erradicar todo o mal à face da Terra? Que Deus é este? E então como a razão não alcança, entra o cinismo ou a fé. A fé está para além da razão. Ultrapassa-a. Mas quem a não tem, e porque há crises de fé, não se pode legitimar a escarnecer do mundo e a culpar Deus e o Homem por aquilo que lhe aconteceu ou pelos valores que desacreditou. Deus não é responsável pelo que nos acontece, da mesma maneira que um pai e uma mãe nao sao responsaveis pelo que vai acontecendo aos filhos por mais que velem por eles. Não podem, não conseguem evitar que sofram e que penem e que agonizem, por maiores os ensinamentos. Se soubéssemos o mesmo que Deus, seríamos nós Deus. Mas há um mistério. O Mistério da criação que nem o Acelarador de Partículas em Geneve consegue decifrar. Quando se fala em sofrimento eu vejo do outro lado a liberdade. E o Mistério. O Mistério da Dor e a Liberdade do Homem ser exactamente o que quer. Cruel, insidioso, bom, amigo, suave, abjecto, digno. Deus nao intervém com o Sol para uns e a chuva para outros conforme as pretensões. Deus nao intervém com castigos para uns e prémios para outros conforme cada um julgue ser merecedor do prémio ou ver um castigo aplicado. Amar pode ser um mistério em si mesmo, e muitos dos que julgamos maus podem ser fruto de outra maldade, o que redunda, não na justificação mas na compreensão do comportamento. São tantas a variáveis, e no entanto ditamos sentenças com um dedo de conversa. Atribuímos a Deus a ganância dos homens e depois dizemos que há fome, miséria e guerra. Ou nos queixamos de um Deus ditador ou de um Deus que permite a liberdade de cada um escolher e fazer caminho. E quanto ao Homem, nem sempre é responsável por os outros terem histórias de canhão e, com isso, mais uma vez, se acharem legitimados a ler o mundo pelo sabor das suas experiências.

Falta-nos reflectir de forma isenta, imparcial, retirando-nos a nós mesmos nesse exercício, qual juiz no seu poder discricionário. Falta-nos a leveza de um pensamento leve. De nao sermos mirabolantes a cada gesto, a cada ideia, a cada situação, como se tudo tivesse de ter segundas intenções ou se todos desejassem fazer mal ao próximo. Nessas alturas não aguentamos e difamamos. Levamos outros a incorrer no erro com o pretexto de que somos ajuizados, sabemos o que estamos a dizer e temos provas... ainda que nas nossas cabeças. E é neste impulso suavemente intermitente que vamos envenenando toda uma cadeia humana a partir dos que nos são mais próximos. Não o fazemos por mal, mas o resultado é sempre esse. Porque ser justo não depende do que achamos ou do que nos dizem. Tomamos Prozac, embebedamo-nos, fazemos do amor um momento, da amizade uma conveniência. Mas existe um remédio. Um remédio natural. Preenchidos na existencial necessidade de amar e ser amados, toda a nossa vida emocional se reequilibra e conjuga forças que já não pensávamos ou ousávamos ter. Amar não é apenas ser amigo. É ir muito mais longe no coração afectivo e  amoroso. É olhar o outro como inteiro e não como parcial, já conspurcado por avisos e idéias que nos trazem como que digladiando fileiras num exército que não existe. Só precisa recorrer a um psiquiatra ou um jurista quem não sabe, não quer ou não pode amar. Um amor que preencha e complete a essência que somos e para a qual fomos destinados, que nenhum Prozac, nenhuma experiência de vida, nenhum deus pessoal, nenhuma filosofia nem nenhuma energia cósmica, poderão alguma vez substituir. Esse Amor exige conquista e serenidade. O Santo Graal da sabedoria. O resto é a vida.