17.2.10

NÃO DESCEREI DA CRUZ

Hoje é Quarta Feira de Cinzas. Não vou falar sobre o que representa isso como início de Quaresma nem vou abordar nada na perspectiva divina, apenas falando de Jesus Cristo como pessoa e não como Deus feito Homem. Feita esta distinção, reparem na pessoa de Cristo. O Cristo histórico. Dissociá-lO da dimensão divina é retirar-lhe história, mas fá-lo-ei para os agnósticos e ateus que me leiam sem pensarem na questão divina. Cristo foi, sem dúvida, um pedagogo, não olhava para ontem -"deixem que os mortos enterrem seus mortos" - mas também não sobrevalorizava o futuro. A cada dia o seu trabalho, o seu momento, a sua dor. Enfatizava a realização plena do ser humano. Não apontava para futurismos, xamãs, astrologias ou linhas da mão. Não iniciou a New Age onde tudo é simultaneamente (in)certo. Apontava na direcção da dignidade do ser humano em contraposição ao achincalhamento que hoje se mantém tão hodierno. Coisificámo-nos há mais de dois mil, anos e por isso a mensagem é sempre actual. Fez menção a um caminho feito de simplicidade e entrega, de alegria e disponibilidade. Sobretudo de compromisso. Quem hoje se compromete com o quê ou sequer com quem? Falava no amor ao próximo como a nós mesmos e não de esferas pessoais egotistas e infantis como se pudéssemos prescindir do nosso semelhante. Todos precisamos de todos. Boa alegoria, é esta: precisamos de mãe e pai para nascer, mas são outras mãos que nos enterram.

Cristo era prático, concreto, inteligente e sensível. Corajoso, frontal e audaz. Firme mas sereno. Evitava aquilo que seria hoje propaganda política, não era um insurrecto e por isso respeitou os poderes instituídos, mas desmascarando-os. Cristo foi vítima de uma trama política, caso ainda não tenham pensado nisso. Ao contrário de Sócrates em que ele mesmo se trama e depois se angeliza. Mas e nós? Cobardes, fugitivos, arrogantes, convencidos, imodestos. Como Sócrates. Como os arguidos do processo Casa Pia, como os autarcas corruptos mas que nada é com eles. Apenas julgamos que as nossas acções e omissões são menos importantes e permitimo-nos ser coisas ou seres humanos de conveniência. Pegamos no bolo de aniversário que nos deram e começamos a conjecturar, a cortar fragmentos do bolo analisando o creme e os enfeites com grandes teorias, e quando sabemos que não temos resposta para o todo, já o bolo está desfeito, sem graça e sem enfeite, sem consistência para sequer o degustarmos. O bolo é a vida que nos foi dada e a análise é a forma como a vivemos, ou seja, como acabamos por não comer o bolo empenhados como estamos em querer saber os segredos do universo e marcarmos as nossas posições como inerrantes e que nem as coloquem em causa porque nós é que estamos certos e ponto final. Meus amigos, não pode haver pior julgamento do que aquele que se acha certo. Ouviu ambas as partes? Indiferenciou um facto? Puniu pelo que viu? Julgou por intuição?

O Homem é um ser crítico e sem esse sentido de crítica a ciência não teria evoluído, mas ter um eye clinic lacto até ao absurdo, é tornar vã uma vida que é única e irrepetível, pelo menos neste nosso estado de tempo. Tudo deve ser posto em causa (inclusive os amigos) mas salvaguardando um núcleo de valores e princípios que devem ser imutáveis. Os valores não passam de moda e isso não significa moralismo mas liberdade, tal como Cristo, e no entanto somos de uma hipocrisia socialmente aceite. Estamos presos numa cela escura que nos traz rasgos de luz e esquecemo-nos que não vale a pena sermos aprendizes de feiticeiro. A psicopatologia e a neurofisiologia, a auto-análise ou a terapia e outras ferramentas no mundo diverso da ciência, são acessórios bastantes para enveredarmos por conta própria em labirintos solitários e orgulhosos de um pedantismo camuflado. Viver, definitivamente, é algo mais do que estar vivo, é agarrar com as duas mãos o sentir único de uma vida única, e aceitar vivê-la como um desafio que é... ou hipotecá-la. Dizia S. João, um dos discípulos de Jesus: "Deus é Amor". Mas um amor concreto, não de sorrisos em paz armada. De um amor que aponta como quem corrige e não como quem julga, que ama sem interesse e não como quem desconfia. Cristo não desceu da cruz. Não se insurgiu injustamente contra ninguém, mas denunciou claramente o lixo humano do qual hoje até nos orgulhamos, de tal maneira vendemos e trocamos valores, julgando-nos bons, honestos, sensíveis... até à próxima ferroada.

Voltando a Cristo neste início de Quaresma, há uma história que talvez conheçam e que sintetiza melhor o que pretendo dizer do que todo este post. É a história de um homem que caiu num poço. Confúcio diz-lhe: "Se me tivesses escutado, não estarias agora nesse poço". Buda disse: "O teu poço é apenas o teu estado de espírito". Um gabarolas exclamou: "Isso não é nada; havias de ver o meu poço". O psicólogo aconselhou: "Tudo o que tens a fazer é convenceres-te que não estás dentro de um poço". O optimista disse que podia ser bem pior e o pessimista que as coisas ainda iam piorar. No final da história vem Jesus de Nazaré. Vendo o homem, pegou-lhe na mão e tirou-o para fora do poço...