6.4.11

VAMOS COMER UM GELADO


Somos atingidos por tantos estímulos vindos de tantas direcções que acabamos por confundir o importante com o acessório, e o nosso filtro fica sempre aquém porque a aceleração da vida e do mundo é alucinante. E como o dia tem sempre o mesmo número de horas e a hora o mesmo número de minutos, entramos em automático sem peneirar e muito menos fruir com a atenção que tanto do que se passa, merece. Lemos blogs já quase na transversal porque são tantos os amigos; comentamos "en passant" pelo mesmo motivo; pomos uma bucha na boca pela manhã ou a meio da tarde sempre com os telemóveis entronizados, em permanente contacto com os outros numa permanente praça do mundo. Mas devíamos estar só à janela, já que implicaria dar valor ao que tem valor e atenção ao que merece atenção. As montras seduzem na rua, os carros passam como bólides de corrida, os passeios são um interlúdio de peões apeados, a televisão oferece mil canais, e com tudo o que isto tem de vida e de ritmo, tem também de um imenso ruído que convém subtrair sob pena de nos coisificarmos. Se der valor a tudo ao mesmo tempo, acabo por não estar a dar valor a nada. De resto nem o poderíamos fazer, já que os estímulos nos invadem literalmente a cada nano segundo. Maior se torna a premência de repensar valores, actualizar decisões e sobretudo uma capacidade de autocrítica sempre muito grande sob pena de nos tornarmos inconsequentes e ridículos.

Somos pessoas e não meros indivíduos. A universalidade do valor do amor começa logo aí. A capacidade de transcendência, de sair de nós próprios, de reflectir sobre nós mesmos, é própria do ser humano e de mais nenhum outro ser vivo. Na sociedade em que vivemos somos confrontados com uma cultura de ideal que se instala num mundo que perdeu os ideais. Fazer pausas, contrariar os mecanismos que já aceitamos como uma segunda pele (desde o ramerrão diário ao trabalho, aos amigos, às opiniões, às modas, à família, ao fim de semana, às férias sempre curtas) é imperioso antes de sufocarmos a alma. Há um abismo que nos separa do mundo mas julgando tudo tão natural, já não entrevemos nada que não o imediatismo e a chamada assertividade e a auto-estima e a felicidade individual e esses livros de autoajuda completamente egoístas. Mas a autoestima não é tanto o gostar de nós mas acreditar em nós: há coisas em mim de que não gosto nem devo gostar, devo, sim, lidar bem com elas. E sermos capazes de ser quem somos, não é ficar a olhar para o meu umbigo porque a exagerada auto estima leva-nos, muitas vezes, a um narcisismo: eu e o meu eu, ao espelho, acima de tudo e de todos, auto satisfeito mas infeliz. A liberdade não é destruída pela opressão mas pela sedução. Com a agravante de que as pessoas não percebem que ela está destruída. 

São tantas as actualizações de tudo e de todos numa vida telecomandada, que nos esquecemos de ser nós mesmos e de parar para sentir a quietude, a brisa, a paz, e não sempre a rezinguice de que tudo vai mal (mesmo quando vai) hipervalorizando e criticando tudo e todos. Algo vai mal. Não se pense que sou alguém muito calmo e meditativo; não sou! Congrego tanta dinâmica pessoal, alegria e ritmo quanto um sentido quase contemplativo, e de amor universal. E dou comigo metido no mesmo mundo de todos os outros mas com uma parte que me reclama mais atenção do que aquela que podemos dar a toda a hora e a todo o minuto, e por isso acabamos por perder tanta coisa. E por isso amesquinhamo-nos sem darmos por isso e diminuimo-nos julgando ser pragmáticos e iluminados. Há que parar e orientar os estímulos noutra direcção, como uns óculos escuros em dias de intenso calor.  Não conseguimos fazer a triagem de tudo o que interessa quando entramos numa livraria, numa loja dos 300 ou visitamos os blogues. Nem triagem nem atenção porque não conseguimos estar em todas ao mesmo tempo. É importante ouvir a cachoeira mesmo que antes ou a seguir tenhamos dançado freneticamente numa discoteca. Falar pessoalmente com alguém ou simplesmente connosco mesmos sentados numa relva de um qualquer jardim mesmo sem banco, ainda que falemos incessantemente ao telefone e por mensagens e por tudo e por nada. Comer um gelado e deixar perder o comboio, o metro, o barco, ou aqueloutro passar-me à frente, mesmo que tenha de acelerar aqui ou ali. Passar um fim de semana a dormir ou desligado de uma vida ensandecida, mesmo que a seguir se retome outra semana ébria de trabalho e preocupações. O nosso corpo precisa. A nossa mente precisa. E o espírito agradece. É que só com ele nos elevamos e podemos um dia dizer: com tudo de errado, de mau e de bom, ainda assim consegui viver e realizar-me como pessoa  e não como funcionário social, egoísta ou colectivo. Porque realizar-me como pessoa não é o que supomos do status à realização profissional, mas ser inteiramente eu. Dizia Sto Agostinho: "se quiseres conhecer uma pessoa não lhe perguntes o que pensa mas o que ama"! Não podia sintetizar melhor...