10.12.14

UMA OUTRA ALEGORIA DA CAVERNA



Somos as nossas crenças, o nosso sistema de valores, e quando não usamos o cérebro racional para depurar o cérebro emocional, fatalmente caímos na altivez da nossa verdade. Não falo da razão sobre a emoção, mas do discernimento essencial e necessário em tudo na nossa vida. Um egoísta julga que se basta a si mesmo mas nunca é feliz porque não é capaz de dar, e não sendo capaz de dar não consegue receber. Sem colocarmos a tónica e o devido valor em cada um dos nossos campos, o emotivo e o racional, a nossa vida estará necessariamente em modo disfuncional. Mas não podemos outorgar à razão aquilo que era uma crença, destapada pela realidade mas encoberta pelos nossos quereres e vontades. A minha opinião deixa de o ser se a realidade me ultrapassar, da mesma forma que o meu autismo aumenta se não verificar em que modo me encontro: o de ver o que quero ver ou de tentar uma espécie de objectividade neutra, que me recoloque onde está a verdade e não onde está a verdade que eu queria! Estas coisas são tão mais graves quanto as deixamos levantar fervura, ou seja, sempre que reincidimos nos mesmos esquemas mentais e, por alguma razão, nos sentimos felizes por isso. Negar a realidade, é já um sintoma de profundo mal estar pessoal. A liberdade de e para ser eu mesmo, passa pela observância constante dos meus juízos, crivados de um firme barómetro que constantemente avalia a interferência dos motivos emocionais, das crenças, do que quero acreditar, sob pena de nova disfunção.
 
Em muitos acomete este modus vivendi! Serão, porventura, recursos mentais para se sentirem bem consigo mesmos, estratégias inconscencializadas de defesa de um padrão, mas por isso mesmo devemos estar atentos à realidade e não ao mero olhar que temos sobre ela. Se uma mulher negar que é vítima de violência doméstica e que o olho negro foi por ter caído de uma escada, ou se recusar ver que o marido a engana mesmo que os tenha visto juntos, está a escudar-se para não se desestruturar, o que sendo compreensível carece, porém, de ajuda, porque na realidade não é uma pessoa livre! Uma pessoa livre toma sobre si a dura realidade, a responsabilidade dos seus actos e as consequências do mesmo. E isso não é fácil, traz dor e leva tempo, mas o importante é que se tenha a capacidade de romper com um estilo de vida que apenas mantinha artificialmente a felicidade.

Acontece nos casos de pessoas que se juntam apenas para não ficarem sozinhas, nos casos de bullying ou negação pessoal, naqueles que só acreditam quando se faz prova (mas o facto de a verdade não ser reconhecida não faz com que ela deixe de ser verdadeira), e ano após ano firmam-se personalidades doentias - e muitas sofredoras - até ao alheamento total da realidade, em que nem o apelo de alguém próximo as convence, entrando em casos extremos em situações patológicas, assente na realidade paralela que vive, como a recusa da morte de alguém, por exemplo...

A arrogância, a altivez do discurso inflamado de verdades - na realidade é uma mera expressão de crenças e valores não percepcionados que foram sendo construidos ao longo dos anos pela observação, pela experiência, e pelo que nos foi plasmando desde crianças -, essas atitudes rígidas e intencionais muitas vezes confundidas com assertividade ou resiliência, são igualmente espelho da falta de liberdade interior, onde muitas vezes no fundo se encontra um profundo sentimento de inferioridade que é sempre sonegado por outro de superioridade.
 
A convicção e a tenacidade, o carácter e a forte personalidade, são diferentes de mera teimosia ou certeza de tudo! Nascem na nossa visão do mundo e das coisas, mas passa por todos os crivos racionais e emocionais para aceitar uns e recusar outros, até assentar numa idéia que mesmo podendo não ser racional para muitos, tem a objectividade crítica do próprio, e isso falta à maior parte: o criticismo dos seus próprios actos, o discernimento, que requer humildade e doação.
 
Um egoísta também procede assim, mesmo não o sabendo. E de passo em passo tornamo-nos herméticos e infelizes, nunca encontrando em nada a satisfação total dos nossos actos, porque a felicidade só se faz na entrega genuína e pura, na liberdade de sermos em responsabilidade, e não apenas metidos em clausuras pessoais de visões tacanhas que a nós próprios não queremos reconhecer...