26.9.21

DO REAL E DO APARENTE


 Mas tu não fazes nada na vida?, pergunta o amigo intrigado. Estás sempre aqui pelo jardim, vejo-te a passear por todo o lado, lês, passeias... Mas que rica vida...

O amigo não responde quando lhe perguntam estas coisas e, mais tarde, confidencia-me assim: sou investigador em Química, trabalho aqui na universidade. Trago esta marmita onde como o almoço aproveitando a serenidade do jardim. Tornei-me desconfiado em relação às pessoas mas guardo os momentos livres para estar assim na minha bolha. És a primeira pessoa a quem falo sem conhecer. Não é que eu não seja educado e gosto de ser prestável, mas nunca me meto com ninguém e não consigo confiar à primeira, abrir-me, as pessoas são más, e também nem sequer me apetece falar com ninguém. Sinto-me bem como estou. Porque havia de mudar? Mas não vale a pena responder ao pessoal da faculdade que me acha rico e sem vida, porque não percebem nada a não ser a competição e ficar por cima. Acredita que sei do que falo. Não tenho constrangimentos com ninguém, assumo o que sou e tenho, mas não sendo infeliz também não sou nada do que acham. Estou no meu canto, no meu percurso e sei o que quero e para onde vou...

Dito isto, deu mais duas garfadas da massa da marmita. Parecia nórdico, 26 anos, pose calma, bem vestido. Eu podia ter-lhe dito muita coisa, mas centrei-me apenas nalguns aspectos. E falei do perigo em ficar crisálida quando pode ter asas e ser borboleta, porque sem as dores da libertação do casulo, as asas não ficam fortes e a lagarta viverá uma vida medíocre sem nunca poder voar.

Que ter as coisas equacionadas, planificadas, pensadas, racionalizadas, não significa que seja tudo. No limite, pode ser uma fuga a outras latitudes da realização pessoal, e falei em duas citações do Principezinho.

Nesse momento, a segurança dele abrandou, senti os olhos humedecerem-se e olhei em redor como quem está distraído, continuando a falar, como se não percebesse o que ele tentava esconder olhando e mexendo no telemóvel desligado.

Continuei o discurso olhando as sebes e as rosas com ar natural, dando tempo a que não sentisse que lhe notei a fragilidade. Depois encaramo-nos. Voltava à sua segurança e eu lembrei-lhe uma coisa.

O problema das pessoas, Hugo, é sentirem com a cabeça, não entram em contacto com as emoções, e depois é natural que vivamos num mundo disfuncional.

Disse-me, então, que andava numa psicóloga, sem referir o motivo, mas dando a entender que isso compensava o hiato relacional. Mas eu disse-lhe que um psicólogo não é alguém que nos leva ao destino. É alguém que nos diz qual é a direção. O destino já somos nós, apenas precisamos de um GPS.

Também temos de ousar, de ir mais longe, mesmo que aqui ou ali nos possamos picar e sofrer. E dito isto terminei: quanto ao que me disseste no início de andares sempre a passear, que gostavam de ter a tua vida e que não deves fazer nenhum, como eu te percebo.

Também muitos pensam o mesmo de mim. E também acho que fazes bem em nem responder. A fase deles é de competição, e sabedoria e inteligência são coisas diferentes, como certamente sabes. O facto de haver sofrimento, não significa que lhe concedamos o poder de nos dominar, mesmo sabendo que nos tolhe.

Também eu sofro, Hugo. E a semelhança do que me dizem a mim é o que se passa contigo. Mas nós não somos as circunstâncias. Somos marcados por elas, mas não somos essa circunstância. É a maneira como lidamos com ela que conta, sob pena de sermos uns coitadinhos e justificarmos os nossos actos.

É por isso que arranjo sempre tempo para fotografar um pormenor, interiorizar um pensamento ou não me embrenhar em trabalho que necessáriamente só pára se eu o fizer parar, gerindo os momentos. É como fazer férias. Não precisamos estar um mês numa ilha paradisíaca para depois passarmos 11 meses a correr. O segredo está no ritmo, na gestão do tempo. E, com ele, a gestão emocional.

Por isso Hugo, disse-lhe em despedida, também eu pareço seguro e confiante, mas sou frágil e inseguro, e também de mim julgam que ando sempre a passear, mas só cada um de nós sabe o peso que carrega, sem por isso ter de o ostentar...