25.2.19

HÁ ALMOÇOS GRÁTIS




"Não há almoços grátis" é aquela expressão que pretende significar que ninguém dá nada a ninguém gratuitamente, há sempre algo em troca, qualquer interesse velado ou directo, mas tal não é sempre verdade. Há dias, um sem abrigo pediu-me no MacDonald's se lhe dava dinheiro porque tinha fome; ar esgazeado, meio lunático e aparentemente perigoso. Sentou-se à minha frente e dele chegavam-me intuitivamente todas as más impressões! Coloquei um ar austero e defensivo porque era mesmo daqueles que armam confusão e se metem com todos! Pedir dinheiro é logo mau sinal... Ontem, porém, estando eu a jantar, vi outro sem abrigo nos armazéns do Chiado, aparentemente envergonhado e abordando de longe uma senhora que também jantava, logo se retirando de seguida. Já me tinha visto, mas continuou. Passado um pouco voltei a vê-lo, e ao contrário do primeiro sem abrigo no MacDonald's, este fazia-me chegar algo de bom!


 Deixei que visse que o olhava, e a passo lento aproximou-se de mim também guardando uma distância. "Olhe, o senhor desculpe, mas podia dar-me qualquer coisa para jantar?" - Eu não tinha dúvidas sobre o homem, mas testei-o para ver a reacção: "olhe, quer acabar de comer a picanha e as batatas fritas?" disse-lhe já eu jantado. "Olhe, com a fome que estou se não se importar"... O olhar era simultaneamente doce, expressivo e triste. Barba grande mas algo aparada, magro, roupa típica mas sem um desleixo de maior. Perguntei-lhe porque não tinha ido comer à carrinha, que sei todos os dias distribuirem refeições no Rossio aos sem abrigo e respondeu que sim, que todos os dias o faz e que a comida é muito boa mas hoje tinha chegado tarde e já não serviam, uma espécie de castigo para aprenderem a estar a horas... Na realidade, o sem abrigo perigoso do MacDonald's havia-me dito o mesmo…

Eu respondi a este samaritano nos armazéns do Chiado, que estava a brincar com ele, obviamente não estava à espera que comesse os meus restos, e que escolhesse o que quisesse. Fui com ele oferecer-lhe a refeição, falei um bocado com ele, notava-se inteligência e bondade, formação humana e dignidade, mas precisava de acreditar nele, de ter auto estima que não tem, e esperava que o chamassem para ser internado para sair das drogas, já tinha ido à segurança social, etc, dizia-me ele enquanto o prato era preparado. E naqueles momentos breves, disse-lhe que todas as ajudas são sempre ajudas, pessoas, instituições,, o que for... mas a verdadeira ajuda será sempre a nossa, a força de vontade, já que tudo o resto é temporário, momentâneo, como aquele jantar que eu lhe oferecia, ou mesmo ser institucionalizado. Respondeu que sim, sabia disso, mas continuava a faltar-lhe gostar dele mesmo. Perguntei-lhe o nome; hesitou em responder e disse: "Hélder"! Muito bem, Hélder, então agora tem de perguntar a si mesmo porque não gosta de si; e se é por causa das drogas então tem de fazer um esforço em tentar consumir menos; evitar ao máximo, porque a segurança é você que a faz e não esse desejo tão grande que tem de o chamarem para ser internado. É uma ajuda mas é você que precisa de fazer mais por si mesmo, Hélder! Se agora alguém lhe desse 10 ou 20 euros que faria você? Provavelmente ia para as drogas, mas são estes pequenos passos que você precisa de dar, acreditar em si mesmo, como você mesmo diz, Hélder" E disse-lhe que é também o mesmo problema de quem está agarrado ao tabaco ou álcool para se sentir num patamar mais natural dos "restantes" seres humanos…

Depois deixei-o sentar-se e jantar sozinho, à vontade. Estava entre o envergonhado e o tenho mesmo muita fome. Respondeu "nunca me vou esquecer disto", e independentemente das verdades que nos chegam do outro ou daquilo que intuimos de mal, como nestes dois casos de sem abrigo, a verdade é que não podemos estar à espera de santos para matar a fome ou proteger do frio, e com todas as cautelas que as ajudas implicam, mas também com muito do que percepcionamos, a ajuda é gratuita e não pede factura nem emenda, e o facto de generalizarmos que são sempre todos os mesmos, a verdade é que são pessoas como nós, e que mesmo que não seja para algo essencial à vida, todos merecemos ser felizes ainda que por momentos, e que só não há almoços grátis, como diz o adágio, se nos mantivermos arrogantemente bondosos sem nada fazer, no deve e haver das facturas relacionais…

Rasgar a vergonha para pedir, não é fácil, mas também não podemos morrer de fome. O que me chegava dele era entre a timidez, a vergonha e a necessidade, mas com gentileza, não aquele ar sonso que colocam a pedir dinheiro, e também por isso devemos estar atentos aos sinais. A mim tocou-me a humanidade do senhor, tinha 33 anos embora parecesse algo mais velho mas não muito mais. Fui eu que fiquei agradecido pela sua humanidade... E se partilho isto é só por um sentido pedagógico: precisamos de desintoxicar de tanta desconfiança...

HÁ ALMOÇOS GRÁRTIS