3.6.19

DO AMOR

O Amor é paixão que se consome continuamente em inocência que não se perde, e por isso erra sempre no modo amar. O Amor entrega-se, vive pulsante cada instante e momento, depende e faz depender, leva a repensar toda a estrutura da paixão. O Amor é oferecimento contínuo, é precisar do outro e chorar, ter medo e raiva, ciúme e pesar, compreensão e felicidade. Sente a ausência de forma alegre porque continua a comunicar no silêncio e nas mensagens trocadas. Porque sendo fiel, sente a felicidade afectiva plenamente realizada na abertura descontraída de quem ama e é amado. Supera imperfeições, perdoa, mas também exige. Muito. E por isso, dando-se assim, na loucura que o correcto não consente, é amor apaixonado, inflamado, estúpido.

Mas o Amor é por natureza estúpido! Não no sentido negativo do termo, mas porque vai além das barreiras e dos conceitos estereotipados do que é o amor. Antes, os pais batiam nos filhos cruelmente e diziam que lhes custava mas que era para bem dos próprios filhos. Hoje temos os filhos a bater nos pais. Até nos idosos. Não é destes absurdos que falo. Referi-o apenas como exemplo dos conceitos e estereótipos do amor e o quão perigosos podem ser! O Amor afectivo e o amor íntimo quer a companhia do amado e dá-lhe a sua. Podem até sufocar-se mas a brecha de excesso que abrir dar-lhes-á de novo espaço para voltarem a amar de forma intensa.

O Amor adulto, correcto, social, que dá um beijo e se subsume às rédeas da vida com uma enorme falta de liberdade, é aquilo a que chamamos pomposamente de amor adulto, de fase posterior à paixão, e que não devemos confundir esta com aquele. Pois eu penso que o Amor, para o ser, tem de ser estúpido, tem de ser louco, tem de ser apaixonado. Um amor muito calmo, convencional, sossegado, cheio de compassos de espera, sem grandes variações emotivas, é uma ligação, não é amor.
O Amor tem de brilhar, começa por ser incandescente, solta radiações que os outros julgam nefastas, atrai e move-se em todas as direcções. Uns dias pode estar mais tranquilo, mas qual vulcão, tem uma energia potencial sempre preparada e que mantém e sustém a própria relação. Um amor adulto, como dizemos, que já se separou da barreira da paixão, do brilho e do encanto, é um amor apagado, tout court. Quais filmes e livros românticos e dramáticos, o amor é isso mesmo: perda, luta, entrega, sofrimento, felicidade, êxtase! Correr debaixo da chuva ao encontro do outro, deixar tudo para seguir um caminho, apanhar um avião para voltar no mesmo dia, suspirar até no sonho…

Sim, claro, há diferentes formas de amar. Sim, claro, o Amor espera. Sim, claro, o Amor tem de acompanhar as necessidades reais e não pode deter-se em lirismos ou fantasias, mas o Amor é mais do que isso! É muito mais do que isso. É a chama irrevogavelmente acesa que de tempos a tempos se pode até parecer extinguir, mas que no mesmo lapso de tempo se ergue renascido aumentada no estímulo constante da emoção. 
 
"Onde houver loucura há amor. Onde não houver loucura, já não há amor". É o caso da mãe que entra num prédio em chamas para salvar o filho quando todos os bombeiros a tentam impedir pelo avançado estado do incêndio. É o caso de alguém que tudo faz por um amigo. É o caso de quem chega a mudar de vida por amor. Sem paixão, aquilo a que chamamos Amor é apenas a rotinização de outra fase que já não se incendiando, entrou nos clichés sociais do correcto e não almeja mais do que companhia para a vida a que se habituou e para a solidão. Pode ser um enorme respeito, uma belíssima amizade, a melhor cumplicidade, mas não é Amor! É, aliás, por ser isto tudo de extraordinariamente louco, que as pessoas, na razão inversa da sua inexistência ou desaparecimento, deprimem, enlouquecem, retraem-se em voltar a amar, afundam-se e vegetam. Porque a força criadora e libertadora do Amor, encontra o seu equivalente inverso na destruição avassaladora, no limbo a que muitos se remetem durante anos, na morte e na loucura. E esse lado negro não existe pelo amor, mas pela sua ausência.

A única exigência do Amor é amar. Incondicionalmente. Sem recatos sociais nem observações moralistas ou cultivadas pela experiência que aqui pode ser falaciosa. Uma aurora boreal não existe para agradar quem a vê, mas porque as circunstâncias estavam preenchidas para que acontecesse. Determinar o modus vivendi do amor, é adulterá-lo. Amor recíproco, é sentir a falta e é servir na mesma proporção do outro. Mas a reciprocidade não é um dado endógeno do Amor. A reciprocidade deve ser a exigência primeira no amor íntimo. Que não será exigência se houver amor. Ainda assim condição fundamental para que ninguém ame quem eventualmente não mereça essa entrega. Tudo o que vier a seguir, uma vez mutuamente aquiescida a entrega, tem de ser amor, sob pena das depressões e dos limbos que tantos conhecemos. Ficar preso ao passado é um desrespeito pelo amor que ainda não travámos com quem o possa alimentar, e pedir reciprocidade no amor universal, pode conter um quê de egoísmo. Mas no amor íntimo, no amor afectivo que move mundos, a única exigência é simplesmente amar...