Sinto-me tentado a não fazer balanços da minha partitura. Tento observá-la neutralmente como uma simples análise. Nas melodias, nos tons profundos, nas notas suaves! De que servirá esta música? Para que servirá esta pauta? Para ser tocada pela sapiência secular da orquestra do mundo? Para ser dirigida por um maestro que racional e equilibradamente conduza as notas em tons mais sintonantes?
Mas é a minha vida. Uma partitura escrita com andamentos do tempo e da experiência. Com fragilidades que descrobriria a emoção (fazendo chorar) ao mais cruel dos homens, e pujantes ritmos que deixariam boquiabertos os mais convencidos! Não existe interlúdios nem traços contínuos. Existem agudos e graves que se misturam incessantemente na harmonia de um sentimento caótico. Por isso não sei viver, dado que não sei catalogar a música. Não sei compartimentar a vida. Viver é relacionar uma amálgama de experiências a cada segundo actualizadas. E, no entanto, todos os dias perguntam quando sai o disco. Mas pode acabar-se uma vida como se fosse a construção de um prédio?
Caminho para nenhures mesmo sabendo que o faço. Pior é quando pensamos saber o fim mas não conhecemos o meio. Até a morte é um momento, não um passo irreversível. Fica a obra, fica o estilo de música, e novos autores darão enfoque a outros percursores.
Não. O disco não sairá como resultado final. O disco sou eu, diariamente tocado por elegias com coros profundos a lembrar as trevas, e vozes doridas a materializar a dor. Com sons carregados de tristeza e nostalgia, mas não tétricos. Com ritmos enérgicos que convidam à dança, com pulsares de alegria que instintivamente nos fazem mexer o pezinho como quem se embala descontraidamente até se aperceber que na realidade fruía o momento em vez de o formalizar. Com notas brilhantes e distintas, simples e claras, sem junção de intrumentos que não o próprio sentir. Querem ir à discoteca?
A chuva cai lenta, miudinha, transversal. Depois torna-se cinzenta e austera. Assustadora. As vozes calam-se. Por instantes o mundo fica silente. Depois uma nuvem brincalhona afasta-se e empurra o sol para mais perto. As vozes voltam a ouvir-se como um tropel que se insinua.
Outras vezes nada disto acontece. No verão também o tempo fica estático. Como nós. O cheiro intenso a alcatrão de alguma estrada inundada de sol tórrido! Sem angústias. Sem anseios. Doentio. São. E tudo isso é música. O próprio silêncio. Tudo isso é vida. Instrumentos naturais de uma sinfonia tocada mesmo quando dormimos. Universal.
A vida não é um catálogo de compras nem um panfleto eleitoral onde constam promessas de um projecto. Por isso, quando me perguntam quem sou ou o que faço, respondo que a vida não depende do êxito do nosso trabalho, ou limito-me a ser eu, desconcertando as pessoas. Outras vezes digo uma frase que li algures, e que espantando o meu interlocutor, me deixa a mim livre para seguir o que quer que seja. A frase diz assim: Só na escola dos baldões da vida se faz o doutoramento para a tarefa de viver...
Aqui estou: num blog, um espaço virtual falando um pouco de mim, agracecendo alguns e-mails que recebo, e mostrando que sou frágil, como todos os que me estão agora a ler. Sim, por debaixo da nossa sapiência e pujança, existe sempre um ser humano... por essência livre, simples e genuíno. Eu estou aqui...