A História da Humanidade tem tanto de heroísmo como de cobardia. Certo é que serpenteamos entre a ética e a coisificação; entre o amor e o poder; Para muitos, o tempo quaresmal que se inicia em Quarta-Feira de Cinzas e que culmina no Domingo de Páscoa, é simplesmente desconhecido. Iliteracia religiosa. Mas reveste-se para os crentes de especial significado. Todos os anos fazemos férias, pretendemos revigorar energias, esquecer a ditadura do relógio e dos dias da semana pela leveza da despreocupação e por uma maior partilha e contacto com os outros, de alguma forma impedida ou pelo menos muito mais limitada durante os restante onze meses do ano. Ora a Quaresma não se assemelha a umas férias, mas tem como ponto de contacto a necessidade de recuperar o sentido da vida, retemperar forças a todos os níveis reforçando-as por um retiro interior, uma reflexão sobre as nossas atitudes, quer na relação connosco mesmos, quer com os outros, quer com a espiritualidade (que não é o mesmo que religiosidade). Espiritualidade é ter noção do que está para além de nós, do que nos transcende e ultrapassa, mas nem todos os crentes têm esta prática de espiritualidade e muitos não crentes têm uma intensa vida espiritual. E talvez assim vejamos com outros olhos o que teimosamente ignoramos, o que orgulhosamente ocultamos, e o que simplesmente desconhecemos de nós mesmos. Porém, nada disto poderia ser feito sem uma paragem no nosso tempo interior! Não para nos determos nele, mas para avançar cada vez mais fortes e conscientes na vivência cristã do amor, que paradoxalmente é o corolário do sacrifício.
É desta forma que se inicia a Quaresma como um tempo de reflexão, de interioridade e comunhão. De pensarmos Deus à luz de tanto ateísmo e de talvez assim percebermos a “solidão de Cristo”, ou se preferirem, a “humildade de Deus”. Um ateu é um órfão que nega a existência de um pai. Prefiro os agnósticos. De compreendermos o mistério da Cruz que é afinal o mistério do Amor, e toda a trama política, religiosa e social que o envolveu. De olhar para o Crucificado despojados da nossa soberba intelectual e do nosso ostensivo ateísmo, como quem passa um certificado de menoridade intelectual a quem crê! E olhar silentemente a figura de Jesus sem efervescências racionais que impedem reflectir com abertura!
Subir à montanha! Há que subir à montanha. A montanha do silêncio. Do silêncio sem pensar, sem discutir, sem pretender... e assim talvez revermos Cristo ausente da nossa auto-suficiência, do nosso horizonte falho de humildade, e do nosso desdém pelo divino. E desta forma, em vez de o voltarmos a crucificar pela cobardia da nossa ignorância, devíamos tentar antes fazer um espaço dentro de nós, para que nos ensinasse, nos falasse, nos calasse, nos amasse ainda mais, e podermos então simplesmente dizer: “Aqui estou”! Ainda que sem crer. É o mistério do Amor.
Diz uma história que certo dia um homem ia a passar quando viu Cristo crucificado na cruz. Ficou tão entristecido que o quis ajudar. “Deixa-me tirar-te daí” – pediu o homem. Mas Jesus respondeu-lhe: “Não! Vai antes pelo mundo e diz aos homens que encontrares, que há um homem pregado na cruz”...