22.4.09

ACOSTUMAMO-NOS


Acostumamo-nos. Mas não devíamos. Acostumamo-nos a morar nas nossas razões sem janelas ao redor. Como quem mora num apartamento dos fundos que não tem vista. E como não tem uma vista, acostumamo-nos a não olhar para fora. E porque não olhamos para fora, acostumamo-nos a não abrir as cortinas. E como não abrimos as cortinas, acostumamo-nos a acender mais cedo a luz. E, à medida que nos acostumamos, esquecemo-nos do sol, do ar, da imensidão.

Acostumamo-nos a acordar sobressaltados porque está na hora. A tomar café a correr porque estamos atrasados. A comer qualquer coisa rápido porque não dá para almoçar. A deitar-nos cedo e dormirmos como se não o fizéssemos há muito, sem ter vivido o dia.

Acostumamo-nos a abrir o jornal e a ler sobre guerras. E aceitando a guerra, aceitamos os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceitamos não acreditar nas negociações de paz. E não aceitando as negociações de paz, aceitamos ler todos os dias sobre guerras e números.

Acostumamo-nos a pagar por tudo o que se deseja e necessita. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagaremos mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar mais pelas coisas que, afinal, não precisamos. Quanto vale um nascer do sol? Um estar com. Um darmos uma folga a nós mesmos?

Acostumamo-nos a andar nas ruas e a ver cartazes. A abrir as revistas e ler artigos. A ligar a televisão e ver os anúncios. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos. Mas esquecemos por defeito o transeunte, o colega, a amigo, o familiar, o anónimo.

Acostumamo-nos à poluição, às salas fechadas de ar condicionado. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam à luz natural. Às bactérias de água potável. À contaminação da água do mar. À morte lenta dos rios. À coisificação do outro.

Acostumamo-nos a não ouvir pássaros, a esquecer o galo da madrugada, a dizer "olá" e "adeus" como quem carrega em botões on/off, a ouvir dizer mal de tudo, aos compadrios. Acostumamo-nos a não arejar o espírito. A pensar que somos eternos e absolutos. Sem inerrância.

Acostumamo-nos a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai-se afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Até acharmos tudo normal e nada nos pesar na consciência.

E com isto acostumamo-nos a poupar a vida, que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.