Recebemos tudo de graça ao nascer, nada é mérito nosso, mas pomos a render cada cêntimo de prodígio, cada metro de quadrado andado, cada acção do nosso trabalho, cada sorriso oferecido, cada segundo de dispêndio pessoal. Por isso, dar de graça o que recebemos de graça, são palavras bonitas que arquivamos na poesia da vida, sem percebermos que nos tornámos predadores da fealdade que acusamos.
“Que tens tu que não hajas recebido?”. “ O mundo avalia as relações com os outros a partir do interesse e do proveito próprio, segundo uma visão egocêntrica da existência na qual, com frequência, não cabem os pobres e os débeis. Toda a pessoa, até a menos dotada, deve, pelo contrário, ser acolhida e amada por si mesma, prescindindo dos seus méritos e defeitos”, escreveu Bento XVI na Quaresma do ano passado!
A Quaresma é um tempo infinitamente rico para os crentes, uma espécie de Ano Santo avulso, onde se revitalizam as questões da fé, ainda que pelo filtro do deserto, do vazio e da aridez da alma, quando esta quer descrer de Deus ao ver que o mundo e a própria vida parecem apenas fruto dos nossos esforços e conquistas. Mas é por isso que se devem educar os sentidos, atacando (do lado dos crentes) uma fé meramente formal e vazia de conteúdo, e recusando (do lado dos não crentes) o império da razão dogmática que nada aceita para além do cientificamente verificável. É que só fazendo Quaresma, só aceitando a reflexão existencial num prisma transcendente que procura a verdade para além de si - mesmo com as inerentes crises de fé num crente, num agnóstico ou mesmo num ateu -, e não em conquistas intelectuais ou elaboradas retóricas, antes na simplicidade do acolhimento, de estarmos receptivos a algo ou alguém maior que nós, é que chegaremos mais livres e firmes à Páscoa de Cristo, que representando a Humanidade, é também a nossa Páscoa...