1.5.11

NÃO ME PERGUNTES SE TENS FÉ

Muitos dos santos da igreja eram proclamados na época medieval pelo povo, que os aclamava. É por isso que muitos deles nunca teriam merecido o altar. Hoje a Igreja tem um processo rigoroso e lento que envolve médicos e teólogos, e embora João Paulo II fosse tornado santo no coraçao do povo logo no dia da morte com o grito colectivo do "santo subito" (santo já), apenas agora e depois de uma mulher se ter curado da mesma doença de que ele padecia, se pode elevar oficialmente à veneração. João Paulo II era um homem, e como todos os bispos e papas antes e depois dele, não são santos e, por isso, cometem erros, mas tentaram uma vida de justiça e rectidão onde impera o amor e o princípio de que o ser humano está sempre acima de si mesmo, elevado pela alma, pela sua própria espiritualidade, mesmo quando afectado pelos males do mundo num lodo que ele mesmo cria mas de onde também sai inocente. Seja a religião católica ou outra crença onde residem os mesmos valores de concórdia, perdão, amor e paz. Mas também a responsabilidade e sentido crítico de que não devemos ser folhas ao sabor dos ventos da moda, das marés do capitalismo selvagem (como João Paulo II classificava), já que são os princípios e os valores que enformam uma sociedade civilizada, e que não precisa de ser conservadora para afirmar esses princípios, mas cuja rendição ao libertismo nos traz num mundo caótico, desenfreado e sem referências.

A sua formação como padre foi feita clandestinamente nos anos da guerra enquanto trabalhava como operário numa pedreira, e a perda da mãe ainda novo e do pai e do irmão, com todas as convulsões políticas que vivia, deram-lhe a tarimba para todo um caminho, onde foi ordenado às escondidas e escapou acidentalmente à perseguição nazi quando rezava na cave de sua casa. É o primeiro papa a visitar uma sinagoga e uma mesquita e que juntou líderes religiosos no famosos encontro de Assis em 1986 desde Dalai Lama a muçulmanos, hindus e chefes indígenas. Em 2000 pede perdão pela perseguição aos judeus no muro das lamentações e é censurado pelo patriarca de Constantinopla que se sente invadido no seu espaço nos encontros ecuménicos que João Paulo II pretendia em nome da união ao mesmo Deus, apenas com nomes diferentes! Mas o patriarca de Constantinopla deve ser muito inseguro para até expulsar padres católicos só pela presença do Papa.

Foi eleito o Homem do Ano pela Time Magazine em 1994 que escreveu: "É um papa intelectual e combativo. As suas ideias são muito diferentes das da maioria dos mortais: são maiores".  Num plano muito concreto, disse o Papa: "O futuro do homem não pode estar nem em Moscovo nem em Nova Iorque". Mas eu salientaria muito do que ele escreveu nas suas Obras Poéticas numa profundidade espiritual (a poesia tem sempre muito de espiritual!) 

"Se existe em mim a verdade, deve explodir.
Não a posso negar, negar-me-ia a mim mesmo".

Falou também que já não existia a Igreja do silêncio porque agora falava através da sua voz, e conseguiu contribuir para o desmoronamento do império soviético. Voltando às Obras Poéticas, escreve também:

"O meu rosto, queimado pelo deserto de vossas almas...
Porque é que não me tirais a vossa cruz,
como eu a tirei a vós"?  


Há muita gente que cospe na igreja e nos papas, sejam eles quais forem, apenas porque tal como muita gente tem um visceral ódio aos americanos, esse mesmo cego instinto fá-las desprezar qualquer tipo de clérigo. Mas essa clivagem devia servir precisamente para percebermos o que é uma pessoa de bem e o que é uma pessoa que pensa diferente de mim; porque mesmo quando pensamos que não somos respeitados apenas porque não fazem o que queremos, isso nao significa que o sejamos de facto. Há apenas outra variáveis que não conseguimos ter em conta, de tal forma metidos na importância que nos damos. A coisa vai ao ponto de se criticar a visita de um Papa a Portugal, de não merecer honras de Estado e afins, como se se tratasse de um malfeitor. Mas tenho para mim que discordar de quem pensa diferente de mim, não é sinónimo de ofensa e de o recusar em minha casa. Se assim fosse (e é com muita gente), seria eu um deus onde todos os outros eram as bestas até que satisfizessem os meus caprichos singulares. Isso nunca seria amor nem respeito ou sequer cortesia. Seria prepotência camuflada com argumentos pseudo-iluministas. O Papa foi um contributo raro na história da Humanidade e mesmo passível de críticas, nunca ninguém disse que era santo. Mas a nossa visão de iluminados leva-nos sempre aos mais brilhantes argumentos que nada fazem excepto dar brilho ao nosso ego e à nossa razão sempre maior do que a dos outros.

Vivemos no mundo perto do lodo que construímos e dos quais somos também inocentes, como dizia há pouco, mas não significa que percamos a dignidade de seres humanos naquilo que nos une mas também no que nos separa. Se gastássemos essas energias da maledicência em diálogos construtivos e de esperança, todos saíamos a ganhar e deixaríamos para trás um mundo melhor do que aquele que encontrámos, onde os arrivismos são tais que parece não haver amor que valha.

Escreve o Papa uma vez mais nas sua Obras Poéticas: 

"Sou um viandante do estreito do caminho da Terra...
E não afasto o pensamento do Teu Rosto, que o mundo não me revela"...

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E, sim, hoje é o Dia institucional da Mãe. Mas o dia da Mãe é sempre que renovamos o sorriso do seu amor. E tal como nada escrevi pelo institucional dia do Pai, nada escrevo hoje. De resto, escrevi aqui sobre o meu Pai, e aqui sobre minha Mãe. É o afago de alma que temos que faz vida. E só na alegria e na esperança podemos perpetuar o seu amor...