Ao pedir-me lume para o cigarro, o rapaz que usava brincos na parte superior da orelha esquerda, uma camisola com uma Torre Eiffel electrizada, umas calças de ganga justas, e umas botas de biqueira quadrada, apesar de um ar limpo como se tivesse acabado de comprar a indumentária e com um cabelo muito penteado, parou um pouco como se interrompesse o pedido, olhou-me com os olhos humedecidos e afastou-se em passo largo.
Não tive tempo de lhe dizer que não fumava, mas intrigou-me o comportamento, e entre ficar apreensivo por mais algum tempo ou arriscar abordá-lo, optei por arriscar.
Era alto e avançava rapidamente. Por isso, já perto dele, e porque aparentava ser estrangeiro, estendi-lhe um: “Hi”! Surpreendentemente, voltou-se. Óculos escuros redondos, mala preta ao ombro. “Sorry, but i’ve been so lonely”... – disse a sorrir como que desculpando-se. Estas coisas acontecem geralmente num filme ou lêem-se no enredo de um livro, mas estava-me a acontecer ali naquele momento. Fiquei, não sei se por isso, momentaneamente gratificado, mas também porque tinha ao seu encontro, não deixando escapar aquela reacção que eu não tinha compreendido. E foi assim que acompanhei o seu passo estugado, apenas vendo-o de perfil.
Falámos. Era fotógrafo de grupos musicais estrangeiros, estava há dois meses em Lisboa e partia no dia seguinte para a Croácia. Vive nos Estados Unidos, em Seattle, onde tem a namorada e o seu círculo de amigos a quem chamava família, e fazia uma viagem de trabalho onde tentava recuperar a auto-estima.
Vinte cinco anos, um quê de confiança e um caminho que desconhece. “Affection”, disse-me já sentado num banco da Gulbenkian depois de uns passos transpirados. E daí fez o puzzle todo. Ali estava um desconhecido apetrechado de coisas que afinal eram o sinal amarelo para um vermelho interior. Vi-o vulnerável, débil e vacilante. Não lhe dei conselhos, mas opinei. E dei testemunhos pessoais. E interroguei-o, falei-lhe depois na tibieza, na dependência que ele dizia ter de estímulos exteriores, e também na tensão emocional daí resultante. E como baixar a tensão? “How, how, Daniel”? Perguntava-me depois em tom quase familiar, mas também sôfrego e sequioso.
Deixei ouvir o silêncio e disse-lhe depois em voz baixa que se ouvisse a si mesmo e que não tentasse uma resposta com “R” maiúsculo, mas tão só uma resposta ou pelo menos pistas para ela. Ele tinha as coisas já equacionadas, apenas não conseguia dominá-las, superá-las, vencê-las. No fundo, a impotência que todos nós experimentamos em diversas situações. E eu estava particularmente sensível a algo de que também padecia: a dependência de forte motivação. E ao seu olhar quase terno, correspondi com um sorriso de empatia e outras quantas palavras como quem pinta de branco nuvens negras que prometem desfazer-se em água.
“Affection”, disse ele uma outra vez. Medo do mundo e das pessoas. Dependente dos seus próprios labirintos numa viagem de descoberta, mais do que de trabalho. Inteligente. Humano. Perdido. E despedimo-nos com a promessa de que ele continuaria a tentar deixar de fumar ou de tomar drogas, de deixar de comer ou... para aliviar a tensão. Pediu-me se me podia prometer isso a mim. Compreendi que surtiria um efeito psicológico diferente. “No Ben, you can’t. You MUST promisse me that!” E depois de um aperto de mão entre dois cidadãos anónimos (ou nem tanto), seguiu para Campolide onde alguém do grupo o esperava, presumo. Seguimos direcções opostas, certamente pensativos.
Aquele gesto abortado ao pedir-me lume para o cigarro, foram afinal lágrimas que reclamaram sair traindo-o no mais inesperado momento. E a única coisa que agora lamento, a uma distância do sucedido, foi não lhe ter dado um contacto ou pedido o dele. Talvez que ele um dia pudesse escrever uma nota a dizer qualquer coisa como “perhaps i still didn’t quite strange habits at all, but i’m trusting myself more than giving myself a try”. E eu ficaria feliz por saber que uma conversa inesperada, contribuíra afinal para o que de mais importante existe na crise da afectividade: amar a fundo perdido.