16.9.09

JULGAMENTOS


Hoje falamos em tudo menos naquilo que é o mais importante: nós mesmos! Ou seja, falamos das intrigas diárias, dos problemas reais e fictícios, das inopinadas correntes ideológicas e práticas, das infindáveis sensaborias quotidianas, das mazelas do sistema, das realezas da Internet, do "glamour" dos topos de gama, do escândalo que alimenta a maledicência.

Neste quadro falamos literalmente de tudo. Da fotografia mal tirada naquele jornal (e será fotografia?), da má dicção de um locutor, da gravata às bolinhas de um conhecido alguém, da estupidez dos outros (que sem referirmos, aumenta a nossa soberba intelectual), da garrafa partida no chão, da criança que nos deixa aturdidos pelo seu berrar, de um painel de publicidade que devia antes dizer o que nós queremos, de um nariz que talvez precise de uma intervenção cirúrgica, da ofensa que é pensarmos que nem todos são amigos da maneira como queríamos que fossem, do livro cujo autor é que está em julgamento e da própria irritação que é andarmos sempre a dizer mal de tudo. Paradoxo: não falamos, afinal, de nós. De nós como pessoas, como agentes responsáveis de uma realidade que também é nossa! Esquecemo-nos de falar como vai o nosso tecido valorativo, a nossa ordem de valores! De nos interrogarmos sobre o que estes representam para nós e na sociedade em que vivemos. Esquecemo-nos de chamar a depor no tribunal da consciência, a dignidade, a honestidade e a reserva de dúvida. Relegamos o ser humano-essência para falarmos do ser humano-vestígio. Apoiamos e condenamos, anestesiados num poder que não temos. Admoestamos e vangloriamo-nos sem fazer referência ao essencial. Somos mestres do acessório, procuramos lógicas e compramos interesses. Afogamos com temperaturas irrealistas, bússolas e termómetros que acabamos por perder. Espezinhamos com a única “certeza” do que ouvimos dizer, e se é verdade que a psicologia explica muita coisa, não é menos verdade que Ser Pessoa vem sempre em primeiro lugar.

No seu livro, François Miterrand escreve: “Achava que o mundo era belo e harmonioso; tive uma infância feliz, pensava que as amizades eram eternas, que os amores eram duráveis, que as pessoas eram feitas para se amar”. Sem dúvida que não devemos ser ingénuos, mas tal não significa que devamos ser uns humanos sonegados ou equivalermo-nos aos outros. É bom lembrar que ser Pessoa não é crime, que ter valores não significa ser-se moralista, e que a dignificação não é sinónimo de fraqueza. E se o que tinhamos como certo, afinal estava errado? E se a aferição de um juizo não correspondia afinal à realidade? E se as nossas certezas forem, afinal, a maior desilusão?
Se crescer é tornar-se adulto sem se adulterar, então quantos anões não há por aí?
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Quero agradecer à Terra de Encanto os selos que amavelmente me ofertou e que já estão colocados junto aos outros. Obrigado Susana, pela distinção.