Quando me deixares entrar em tua casa com o pó por sacudir, saberei que não é na geometria das coisas que vives, mas na diária tentativa de ergueres na alma o aprumo que te falta. E se o sorriso te esconder a vergonha da cama que mal fazes ou das cores esmaecidas nos objectos que não tratas, não confundirei com negligência a prisão do ser, que hipotecado em cíclicos desencantos e abúlica energia, aguarda que a chama se acenda num frágil pavio, sustendo os serviços mínimos do ânimo até que os grilhões te libertem, dando à vida novo rumo e nova cor, limpando o pó e fazendo a cama, renovando as coisas abandonados e vestindo de alegria o cheiro a mofo de uma vida anémica.
Mas se me convidares para tua casa reluzente e bela com jardins e mesa para os convidados...! Se me chamares a participar da perfeição das coisas num festim de luxo que te exulta a felicidade...! Se me mostrares que não há pó em tua casa e lavas a cara com o perfume que te invejam...! Se principescamente te vestires e tudo for majestático como os livros encadernados a ouro na estante da vida...! Se os móveis adornados em talha de pérola de títulos académicos, e as tapeçarias e sofás ampliarem o espaço exíguo da alma que não mostras... então vou dizer que não posso, e invento uma desculpa qualquer, porque até que outras nuvens passem sobre o teu céu, é na cama por fazer e nas cores esmaecidas que jazes vivente, qual divisão da casa fechada a todos, com a desculpa de não habitar lá ninguém. Porque o erro da felicidade é confundi-la com a perfeição, mas eu só vejo perfeição naqueles que embora com brio e desvelo, têm sobretudo muito amor, e nem por isso se envergonham de uma casa desarrumada com livros pelos cantos e postais a forrar lembranças, tirando do frigorífico um iogurte quase fora de prazo ou o caviar da conversa humana, tão distinta daquela onde se fala tanto e não se diz nada, apenas aumentando os handicaps pela maledicência da vida, sucessos profissionais, veladas invejas e sorrisos petrificados no blush social.
Mas o festim simples e libertador da alma não é este, e pode durar uma noite inteira. Não teve convivas nem flutes, nem roupas de ocasião. Se calhar tinhas até o cabelo por lavar ou uma nódoa antiga, como os livros amarelados de serem lidos e mexidos, ou os objectos puídos pelo uso emocional que só tu vês! Mas é aí que me revejo, e por isso me deixo ficar até ser dia, quando os outros regressam com portos de honra, para desembrulharem durante a semana, toda a frustração e infelicidade, que metidos em fatos Armani ou vestidos Prada, não puderam desencarcerar numa festa que devia ser encontro.
Convida-me só quando tiveres pó em tua casa, e saberei que o quarto fechado onde mais ninguém entra, para iludires nas restantes divisões da alma a felicidade que não tens, é exactamente aquele onde verdadeiramente és e te libertas, e onde também eu serei até chegar a madrugada...