1.5.12

"ESTÁS MAS É BÊBADO!"

Um rapaz encaminha-se quase perigosamente para mim em fim de noite. Os amigos olham-no na esperança de que no dia seguinte tudo seja diferente, mas embora atentos não interferem. Lança-me uns impropérios próprios de quem não está em si, e de repente quase sinto a respiração dele de tão arrojado ter vindo na minha direcção. Mantenho-me imóvel e ele reclama do futebol, da injustiça da corrupção, abraça-me pelo pescoço a dizer que é de paz, e continua o discurso de um revoltado. As pessoas olham-nos, outros tantos jovens estão mais intrigados com a minha reacção, ali sozinho, do que propriamente com o rapaz que me aborda. Diz que está bêbado e lança uma ou duas asneirolas que fazem temer os presentes que se fingem afastados. Está intrigado desde o início por eu não dizer nada, e quer respostas, quer diálogo, que eu acredite que é boa pessoa, que se fosse preciso dava-me cinco euros, mas é pela paz no mundo, e acaba por perguntar como me chamo, dizendo que o nome dele é Guilherme. Eu sei que estou bêbado, eu sei, mas como é que o senhor se chama, já agora? Não acredita nisto que lhe estou a dizer que as pessoas são todas iguais, só querem interesses e não se interessam por ninguém? e levanta mais a voz afastando-se de mim para de imediato se aproximar ao mesmo nível de quase intimidade. "Cala-te puto, estás bêbado, meu"! - chateia-se um dos amigos. Ele olha-me como se subitamente envergonhado,  e eu pergunto-lhe: "Guilherme, que nota de bêbado é que dava a si se tivesse de se classificar?" E ele responde de imediato: "12". O amigo fica atónito mas aparentemente reconfortado. Depois de um breve silêncio digo-lhe que ele não está bêbado, está revoltado, que na sua idade tudo aquilo é muito normal e que amanhã acordará diferente. Faço-lhe sinal para falar mais baixo, e  ele anuindo de imediato ao pedido, volta ao tema de que as pessoas não se amam, que é vegetariano  já viu isto do futebol? Revolta-me mesmo, revolta muito, só corrupção...

Guilherme, os problemas do mundo não se resolvem aos gritos, e você está a trocar uma revolta por outra. Tapa com o futebol a revolta pela sociedade. Eu sei que você é inteligente e um 12 dá-lhe para perceber isso!... Rimos os dois e os amigos entram na conversa "vês, puto? o que é que eu estou farto de te dizer?" enquanto outro atira "ouve, eu estou em economia percebo uma beca disso, tu não fazes nada no mundo sem dinheiro, meu, nada. O dinheiro manda tudo"... Guilherme parece perdido mas mais atento, e quando volta a reclamar do futebol, interrompo-o dizendo-lhe que se quiser falar não repita a história do futebol, que ele é inteligente o suficiente para perceber que são energias perdidas, e ele, percebendo, muda o rumo da conversa para problemas do foro familiar, quase confidenciando. Os amigos desinteressam-se pela conversa que não ouvem bem mas em que se mantêm atentos, cada um com outro amigo ou em pares que se conhecem de outros locais.

O comboio chega e eu também entro. No percurso em que apenas os dois falávamos e os bêbados pareciam os outros, foi-me contando que amava a mãe, que um dia eu me iria orgulhar dele, haveria de ouvir falar do biólogo marinho Guilherme dizendo o resto do nome, que não queria que a mãe sofresse com ele o que sofreu com o pai que a abandonou, que sim, eu tinha razão, o senhor percebe-me bem e tem razão quando diz que eu nao devia embebedar-me nem nada disso, mas é só de vez em quando e porque não aguento o que o meu pai fez, está a ver? Nenhuma namorada, nenhuma rapariga no mundo para mim é tao importante como o futebol e muito menos do que a minha mãe. Porque eu adoro, eu amo a minha Mãe como o primeiro ser na terra, Daniel, mas viu como é? Ouça, Daniel (e abraça-me sempre no tom ameno de conversa desde que lhe pedira para falar baixo), dá-me o seu número de telemóvel? Desculpe tratá-lo assim, o que é que o senhor faz? Você percebe-me tão bem... E a conversa continua diagonalmente, revelando um pensar estruturado que uma mera bebedeira não permitiria, e uma curiosa inteligência nos temas que surgiram.
 
Puto, chegámos, - diz-lhe o amigo mais protector que embora distante, esteve sempre atento. Posso-lhe dar um abraço? - pede Guilherme meio perdido. Gostava de falar consigo... E no meio de entradas e saídas vejo-o seguir na direcção contrária  da estação, ao que os amigos lhe gritam que não é por ali, mas ele continua na direcção errada onde estava um banco. Senta-se, põe a cabeça entre as mãos, e à medida que a porta se fecha e o comboio avança, vejo metade dos amigos a olharem para mim e outra metade imóvel a vê-lo chorar...

As melhores conversas são as que se têm de alma aberta (mesmo que no silêncio imediato das lágrimas que não se vêem e mais tarde jorram como as de Guilherme), e as melhores acções não são as que se evitam, mas as que nos despem da beleza social que só os olhos da verdade sabem ver como são feias. Somos sangue e lágrimas. E força e encanto. Somos violinos tocados por anjos, e ouro puro nas mãos da humanidade. E entre os quilates do que somos e as bijuterias do que mostramos ser, vai a distância da saúde e da doença, embrulhadas em clínicas forçadas onde o remédio somos nós...