7.4.23

SEXTA FEIRA SANTA

 


É Sexta Feira Santa. À hora de noa, ou hora nona, correspondente hoje a por volta das três da tarde, Jesus morre na cruz, vítima de uma trama política e religiosa, e com um grau tão grande de stress, que o suor é sanguinolento (hematidrose, uma situação rara provocada por um violentíssimo stress).

Depois de ter orado no Monte das Oliveiras onde pede aos amigos que fiquem acordados com Ele, sendo que, entretanto todos adormecem, Jesus mantém-se toda a noite em profunda oração, como que preparando-se para o julgamento onde Pilatos não vê qualquer razão para o prender dizendo isso mesmo ao povo, mas a fúria para que Jesus fosse sentenciado e morto,

o clamor do povo, obriga Pilatos a dizer "Quem quereis que liberte? Jesus ou Barrabás?"

e todos gritam "Barrabás", já que havia o costume de libertar um criminoso pela Páscoa,

(tal como hoje existe a indulgência anual do Presidente da República a uma série de casos de prisioneiros que lhe são propostos, e verificando os mais "suaves" e o bom comportamento).

O próprio Pilatos fica enfurecido, volta para dentro, interroga de novo Jesus dizendo "não sabes que basta uma palavra minha para que sejas solto e não crucificado e morto? " Mas Jesus responde: “O meu Reino não é deste mundo. Se fosse, os meus servos lutariam para impedir que os judeus me prendessem. Mas o meu Reino não é daqui.” E a acrescenta " Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida"...

Pilatos pergunta-lhe: "o que é a Verdade?" mas Jesus não responde.

Pilatos não quer condenar um inocente, mas perante a exigência cega de um povo ignorante que antes o tinha aclamado, julgando que seria o libertador de todos os males, uma espécie de político que os livraria do jugo dos romanos, não percebendo que Jesus diz que as ordens instituídas devem ser respeitadas, mas não compactua, nem sugere qualquer insurreição,

porque o Seu papel é da revolução interior, revogando as normas do "olho por olho, dente por dente", fazendo antes a apologia do Amor fraterno, com os exemplos que dá, como o de Maria Madalena, que prestes a ser apedrejada por ser uma mulher adúltera (era esta a pena),
Jesus ao ver a situação, não teria muitos argumentos para a salvar, já que se cumpriam as tais leis que Ele vinha revogar, mas inteligentemente, interpõe-se entre a mulher e a populaça munida de pedras, e diz:

"Quem nunca pecou, que atire a primeira pedra"...

Isto desmontou qualquer argumento para iniciarem o apedrejamento público, e quando todos tinham dispersado, com Madalena totalmente incrédula (basta pormo-nos no papel dela que, por segundos, ia ser alvo de arremesso directo de pedras por todos, as vezes que quisessem e, provavelmente, até ficar sem vida numa morte horrenda), Jesus diz-lhe: "Vai...e não voltes a pecar"....

Perante esta revolução interior que Jesus traz, e não um político para livrar o povo da opressão, é pedida a Sua sentença, e Pilatos, irado por Jesus não querer renegar nada e irado pelo povo sedento de sangue, faz o gesto simbólico de lavar as mãos dizendo que a culpa de Jesus ser crucificado é deles, que nada tem a ver com isso, libertando, então, Barrabás...


Depois do Calvário com a Cruz às costas, como era o comum dos criminosos sentenciados que tinham de levar a sua própria cruz de madeira, pesada e enorme onde seriam crucificados num lugar fora das portas da cidade,

e passando à frente o estado em sangue e sem forças ao carregar a cruz, caindo por três vezes no caminho, de tal forma que os soldados romanos ao verem um homem vindo do trabalho, no campo, Simão, dizem-lhe que carregue ele a cruz um bocado, enquanto Jesus faz o caminho em interior antecipada crucificação, repondo-lhe, depois a cruz para a carregar até ao fim.

Quando já crucificado na cruz (contrariamente ao que vemos nas representações, as cavilhas, os pregos, não eram pregados nas mãos, mas nos pulsos, a fim de as mãos não se rasgarem com o peso do corpo),

dizia que, quando já cravado na cruz, com os seus amigos, os discípulos, e Maria a seus pés, e mais algumas pessoas que percebiam o absurdo e injusto de tudo isto, como o próprio Pilatos, mas havia uma questão política e religiosa, que poderia fazer com que se fossem queixar ao Imperador, (tal como a política, hoje, sempre movida por jogos de bastidores),

e Maria aos pés da cruz interiormente devastada, tendo acompanhado todo o percurso e totalmente impotente, Jesus, que ao orar toda a noite pedindo aos amigos que ficassem com Ele no sentido de acordados, chegou a pedir "Pai, se possível, afasta de mim este cálice",

vendo as lágrimas de Maria, e o sofrimento dos discípulos, diz do alto da cruz (onde foi feito rei por escárnio dos soldados romanos, que diziam "não eras tu que dizias que eras o rei dos Judeus?" pondo-lhe uma coroa de espinhos na cabeça, e dando-lhe vinagre na ponta de uma lança que chegasse à boca, quando Jesus diz aos soldados "tenho sede") ,

- não nos esqueçamos do suor em sangue que refiro logo no inicio, e de todo o outro, perdido durante a caminhada e pelas versgatadas, e sendo o sangue composto essencialmente por água, aquele "tenho sede" foi só mais uma forma para os soldados, novamente troçarem dele, dando-lhe uma esponja embebida em vinagre, em vez de água -,


Jesus do alto da cruz diz, então, a Sua Mãe:
"Mãe, eis aí o Teu Filho", e virando-se para João (um dos discípulos mais "afectivos" comparativamente a Pedro, cortava uma orelha a um soldado romano e sempre intrépido), diz a João: "Filho, eis aí a tua Mãe"...

Chega a hora de Noa, ou seja, cerca das três da tarde de hoje, e prestes a expirar, Jesus diz na cruz: "Pai, nas Vossas mãos, entrego o meu espírito...." E, dito isto, expirou, enquanto todo o céu se cobria dando-se um eclipse solar e um terramoto...

Escreve assim um paleontólogo: "A minha fé em Deus não é um puro assentimento racional a um credo abstrato. Deus não é uma ideia. Tão pouco uma divindade difusa no oceano dos confins do cosmos, como defende a New Age.

O grande problema de muitos cientistas é que mantêm uma imagem infantil de Deus e essa imagem não se dá bem com a maturação de uma visão científica do mundo. O conflito cognitivo não se resolve e quebra na parte mais débil: a experiência interior. Sem vida interior, não é possível crer."

Este "sem vida interior", ecoa muito em mim, porque considero-o uma das mais importantes razões pelas quais não se ama, não se partilha, não nos tornamos solidários, não chegamos ao Outro nem às suas motivações, vivemos uma superficialidade existencialista muitas vezes sem darmos conta disso, não conseguimos gerir as emoções nos momentos mais difíceis, nem sequer as reconhecemos ou o que nos estão a dizer... tudo porque não existe vida interior...

Curiosamente, Einstein diz algo praticamente igual ao teólogo paleontólogo: que "uma espiritualidade que não brota do contacto com a vida, com as injustiças de inumanidade, não é espiritualidade".

E quão verdade isto também é. Voltando ao paleontólogo, "Deus não é um puro assentimento racional, e sem vida interior não é possível crer",


eu diria mais: a Deus não se chega pelo esforço intelectual que d'Ele possamos fazer. Tal como não chegamos ao Outro apenas usando a razão: será sempre outra coisa, a sensibilidade, para compreendermos o que, pela razão, não há resposta e desconhece.

Sem sensibilidade, uma pessoa apenas com um elevado Q.I., pode ser um arrogante que não entenderá sofrimentos interiores ou simples gestos humanos, porque não é a razão que o explica...
Comparativamente, é aqui que entra a Fé.

Fé (que não é uma mera crença ou uma fezada ou um "acho que", vem precisamente de uma adesão interior, como duas pessoas que se tornam amigas para a vida, como os casais que se entregam e partilham mutuamente a sua realização);

E Fé e razão são caminhos distintos que não se invalidam, tal como não se ama alguém por um esforço intelectual, porque é necessário Sentir. Explicar porque se tem Fé, ou acredita, é como explicar porque se amam os filhos e, estes, os pais.

A resposta está no Sentir, não na explicação...

"Contacto", um filme de ficção científica do livro de Carl Sagan, com Jodie Foster, trata com muita honestidade intelectual a razão e a fé, fazendo Jodie Foster de cientista que tenta perceber um sinal que vem de Vega, a 26 anos luz, tendo os políticos tomado controlo do projecto, e decidir o que fazer com a comunicação, sem descurar as implicações religiosas, tendo por isso um padre/teólogo,representado no Conselho, o padre Palmer Joss (Matthew McConaughey).

Quando, no fim, a cientista o interpela relativamente à experiência, como que," em que ficamos nisto tudo porque eu viajei, experienciei embora na Terra digam que nunca saí do lugar e que se passaram apenas alguns minutos, afinal onde fica a ciência nisto e a religião?"

(embora não conseguissem explicar a errática do filme correspondente ao tempo em que cientista experienciava todo um outro mundo, mas totalmente descredibilizada), o padre responde à cientista:

"A diferença é que procuramos o mesmo;
apenas por caminhos diferentes".

Isto lembra-me Theilhard de Chardin, quando diz que:
"não somos seres humanos
a viver uma experiência espiritual;
somos seres espirituais
a viver uma experiência humana...".


É Sexta Feira Santa, quando a Ucrânia é invadida e um país quase dizimado, e continua...

É Sexta Feira Santa quando os poderosos nada fazem do que dar sentido ao dinheiro mas não à vida;

É Sexta Feira Santa, quando pessoas sofrem no silêncio de uma depressão que só ela sabe ter;

no esforço de quem tendo tão pouco, sobrevive sem a esperança de uma vida melhor.

É Sexta Feira Santa, quando se carregam cruzes insuportáveis, doenças incapacitantes, diagnósticos com pouco tempo de vida, traições, solidão...

E, é em todas estas dores, que Jesus expira na Cruz, fazendo-se Homem que conhece a nossa dor e por ela dá a vida.

É a Fé que vem sempre de dentro, num encontro pessoal de certezas, que só a dúvida desfaz...