2.4.12

DÚVIDA, RAZÃO E FÉ


Falta uma semana para a Páscoa, e crítico como sempre fui em relação a tudo o que mexa comigo (futebol não mexe, economia não mexe, dia mundial do beijo, da voz, do escutismo, da segurança e higiene no trabalho - tudo dias que se comemoram este mês - também não, nouvelle cuisine, arquitectura, novas tecnologias, banda desenhada, associativismo, pintura naíf, ovnis, astrologia, física quântica, bla bla bla... também não), mas a Páscoa mexe comigo, tal como o Natal, a Justiça, as concepções de amizade e de vida, e tudo o que diga respeito ao Homem!  

Não é que mexa no sentido em que tendo já tudo preconcebido, nada mais aceito, já que nesse sentido nem valeria a pena testemunhar o meu próprio sentido crítico para depois nada mais aceitar além disso, como tante gente que fala de tanto assunto sem o ter estudado minimamente! É o caso dos ferrenhos do partido A ou B que, mesmo conhecendo a realidade nunca resistem à tentação de defender o seu partido (e isto nada tem a ver com o meu post sobre Sócrates há dias atrás), ou de quem sendo crente não entende um ateu e, obviamente, daqueles ateus que só falta cuspirem nos crentes. Mas é esse sentido crítico que me perturba e põe em confronto com realidades que talvez não sejam apenas entendíveis pela razão.

Não gosto de passar pelas coisas sem as perceber, sem lhes intuir o significado, e também não gosto de me segregar nos tais preconceitos de que um crente é que tem razão, ou que um ateu é que sabe tudo! Por isso não me bastam os ovos de páscoa, os coelhinhos de chocolate ou simplesmente saber que é uma belíssima época para mini-férias mesmo em tempo de crise, assim como não me basta desejar uma páscoa feliz sem primeiro saber bem o que é isso, ou dizer que é uma época que não me interessa nada e simplesmente passo à frente como se fosse outra coisa qualquer. Ser-se assim, é ser-se redutor de si mesmo em soberba intelectual de quem tudo sabe mesmo que não saiba nada.

Claro que estes exercícios implicam saltar um patamar primário de perguntas para as quais não vale a pena insistir nas respostas, como as velhas perguntas ontológicas de onde venho, para onde vou ou o que faço aqui, assim como requer uma abertura do espírito e da mente, e não partirmos do pressuposto que sim, obviamente Deus não existe , ou exactamente o contrário, que sim, obviamente Deus existe!!! 

A razão diz-nos sempre o óbvio: Deus é uma representação mental, elaborada, não existe, mas respeitamos quem crê (ou não)! Por outro lado, que razão "fala" connosco? Uma razão limitada no seu próprio preconceito ou uma razão mais aberta ao jeito socrático? É que também nós nos auto-iludimos! Por outro lado temos os fundamentalistas de Deus, islâmicos, budistas, católicos, adventistas, cristãos, judeus...para quem a sua existência é tão óbvia que mete dó quem não crê!

Muitos dizem que não são crentes nem ateus, que se põem de fora como na política e no futebol, não sendo necessariamente agnósticos porque é um tema do domínio da espirtitualidade e por aí se ficam. Mas a coisa começa logo aí: espiritualidade e religião não são exactamente o mesmo! A espiritualidade é um domínio humano que não é exclusivo de nenhuma religião, e está hoje muitíssimo em voga porque não tendo encontrado na ciência, na técnica, na economia e na política a resposta para os seus anseios e desejos, o homem preocupou-se com a new age, vibrações cósmicas, seitas, etc. Há, portanto, uma espirtualidade tipo a la carte, impessoal, indeterminada, esotérica, gnóstica, onde as experiências espirituais não vêm necessariamente de Deus, recorrendo-se a termos como "luz", "amor", e uma espiritualidade diferente desta, a espiritualidade cristã, onde o sagrado tem um nome, Deus tem uma história pessoal, existe antes de nós, chama-nos pelo nome e fala, mostra-se, manifesta-se, revela-se! E isto desinstala porque não favorece o compromisso!

Surge uma das perguntas: Deus é mesmo o Deus revelado na Bíblia, o Deus que agora se proclama na Páscoa, esse rito de passagem do homem velho para o homem novo, Jesus Cristo que morre na Cruz com todo o percurso humano, pessoal e espiritual que lhe conhecemos? E se Deus existir mesmo? Porque fácil, fácil, é começar por negar a sua existência, obviamente. Mas posso eu ver o vento, ouvir o amor, cheirar a paz, tocar a amizade, saborear a madrugada? E, todavia, não são tudo isto realidades? Se os cinco sentidos não me oferecem a certeza da realidade (sem falar nas ilusões como o geocentrismo, que imperou por uma suposta evidência onde o sol nascia de manhã e se punha à noite, num movimento que todos viam sem quaisquer dúvidas quando, afinal, somos nós quem giramos?), então já devo começar a duvidar de que não serei apenas matéria, corpo, um pouco à semelhança do cogito, ergo sum de Descartes!

Uma quase verdade se apresenta: de que não somos apenas, meramente e tão-só, matéria! Não há uma base neurológica para o entendimento da auto-consciência, daquilo que faz do homem uma pessoa moral, mas a neuro-ciência embora diga que existimos como uma unidade, também nos diz que o self não está dependente do funcionamento cerebral, que a pessoa é mais do que a mera articulação de sistemas operacionais.

Escreve assim um paleontólogo: "A minha fé em Deus não é um puro assentimento racional a um credo abstracto. Deus não é uma ideia. Tão-pouco uma divindade difusa no oceano dos confins do cosmos, como defende a New Age. O grande problema de muitos cientistas é que mantêm uma imagem infantil de Deus e essa imagem não se dá bem com a maturação de uma visão científica do mundo. O conflito cognitivo não se resolve e quebra na parte mais débil: a experiência interior. Sem vida interior, não é possível crer".

Só nesta passagem, e só falando do fim, "sem vida interior não é possível crer", há já imensa coisa a reflectir. Não é de facto verdade, que uma pessoa sem sensibilidade e pouca formação humana não conseguirá ver a mínima beleza em notas sinfónicas, no mar, na noite, num poema, num determinado filme ou mesmo numa situação humana de injustiça? 

Mas o paleontólogo continua: "Mas essa vida interior não é intimista, ausente da realidade. A experiência de Deus deve alimentar-se da experiência humana, do contacto com a vida, com a realidade dura, com as mordeduras na própria carne da injustiça de um mundo desigual".

Por sua vez, dizia Einstein que "uma espiritualidade que não brota do contacto com a vida, com as injustiças de inumanidade, não é espiritualidade".  Ora cá temos de novo a questão da espiritualidade a la carte, como chamei mais acima, porque não compromete, porque podemos mudar conforme mais nos convenha, atribuindo ao cosmos e afins a paz que deificamos "nesse deus", uma religião pessoal usada com os ingredientes que a cada dia queremos juntar, e não já um Deus humanado, como agora se relembra particularmente na Páscoa que está à porta, e sobre a qual importa pensar, sob pena de estarmos sempre nos mesmos coelhinhos e ovinhos de chocolate como se fosse uma feira infantil desprovida de particular significado num qualquer fim de semana!

Todas as quaresmas a Igreja escreve uma mensagem através do Papa, - essa figura odiada sem fundamento humano como nem os ditadores são, tal como os Estados Unidos onde nunca se vê qualquer bem, sendo que sem ele ainda hoje a Europa estaria nas cinzas da guerra, - e na mensagem deste ano (que só li há dias e não totalmente) chamou-me isto a atenção: "Com frequência, prevalece a indiferença, o desinteresse, que nascem do egoísmo, mascarado por uma aparência de respeito pela esfera privada. (...) O facto de sermos irmãos em humanidade e, em muitos casos, também na fé deve levar-nos a ver no outro um verdadeiro alter ego".

Quando me pergunto todas estas coisas que dariam páginas e páginas onde se convocaria a filosofia, a moral, a psicologia, a teologia e a ciência, obviamente não concluo que isto é assim e aquilo é assado, até porque a mesma realidade é lida de formas tão diferentes (basta ver na política), mas também não posso ceder à tentação draconiana, teimosa e quase arrogante, onde a minha razão sempre me tenta convencer com a tentativa de negação de uma realidade que, por não ser mensurável nem explicável pela lógica (mas também nem tudo o que é lógico é racional), se nega a crer em Deus, o tal agora comemorado na Páscoa, começando na Sexta Feira Santa com toda a história que lhe conhecemos e a trama política e humana a que Jesus Cristo foi sujeito, e a sua relação com Deus no mistério da salvação!

Chego assim à clara evidência da existência de Deus no meu mundo, e na ordem natural das coisas e de tudo o que existe? Não. Mas a razão e a fé são como que caminhos paralelos, não caminhos que se anulam ou atropelam (pelo contrário, a ciência explica metade das escrituras, como o dilúvio, a separação do mar Morto, a praga de gafanhotos e outras partes da Bíblia)!

E é por isso que um crente deve começar por ser ateu, por questionar, por desconstruir aquilo que são fantasias, por estar receptivo a crer, qual homem feito que na pujança da vida e na posse das suas faculdades cognitivas e independência, não se fica por idolatrar o trabalho, o sucesso e o dinheiro, antes estando receptivo a algo inteiramente novo na sua vida e que se chama amor! Isto se for inteligente, claro!

Esta, aliás, podia ser uma boa definição de Deus, como a dá um dos seus amigos, o apóstolo João! E claro que entrando depois no campo da Igreja como instituição, como meio deixado e instituído por Cristo através dos amigos chamados apóstolos, a quem confiou a missão e a Pedro particularmente com a simbologia das chaves (abrir portas da terra e do céu), e que é hoje o Papa pelo poder translatício (tudo coisas que me fazem muito mais sentido do que setenta virgens no paraíso), podemos ter novos recuos numa fé inicial, numa aproximação quase lenta como um enamoramento num primeiro amor, mas tentando perceber sem desculpar que a Igreja é feita de homens, e que tem mais de dois mil anos, também não se pode olhar para a Igreja como se continuasse parada na Idade Média como tanta gente que não lhe faz o upgrade, e peca por nem se dar ao trabalho de conhecer a realidade, e se tornar assim um iliterato religioso! Mas da Igreja como instituição é outra conversa para outro dia, se for o caso.

Por outro lado, poderia concluir facilmente que sendo a fé de outra ordem que não a racional, então talvez devesse explorá-la, segui-la, senti-la, ciente porém, de que nestas coisas nunca a razão será resposta cabal, tal como a fé só por si facilmente cairá em fanatismos como tantos que conhecemos! Nesta dualidade, tal como no enamoramento e mesmo no amor supostamente consolidado, há dúvidas, recuos, confusão, e então é quando me dou conta que é já o próprio espírito em estado de convulsão, de exigência de mim mesmo, e talvez de novo a razão se tenha de limitar à finitude que lhe cega o orgulho (e aqui lá iríamos nós a Freud e ao princípo do prazer), lá se terá a razão de limitar a ser um instrumento, uma ferramenta, porque há tanta coisa que lhe escapa mesmo quando quer compreender, e quando não conseguindo, frustrada como fica, simplesmente a nega do alto da sua néscia sabedoria!

E talvez tenhamos de nos socorrer de coisas tão simples como "De Deus esperamos provas da sua existência, mas Ele dá-nos provas do seu amor" (Gilbert Cesbron), ou "um ateu é um filho que se esforça por se convencer que não tem pai" (Lamartine), ou, ainda melhor nas palavras de Blaise Pascal: "As realidades humanas, é preciso compreendê-las para as amar. As realidades divinas, é preciso amá-las para as compreender"...

É sempre um caminho pessoal, o caminho da interioridade e da fé, e tanto vale um crente genuíno em Deus, quanto um ateu igualmente genuíno, mas mais facilmente tomo partido pelo haver mais coisas entre o céu e a terra do que na minha filosofia, para parafrasear Shakespeare, e como tal entender e até ser um agnóstico intermitente, do que simplesmente um ateu que me merece o mesmíssimo respeito que qualquer outra pessoa que de mim pense diferente, mas a quem talvez tenha maior dificuldade em perceber porque nunca passou desse estágio nem que fosse para o do talvez! Idolatria da razão ou falta de humildade de que não sabe tudo? Posso e devo celebrar a Páscoa muito mais facilmente, se tentar começar por perceber afinal o que é isto, do que desejar, independentemente dos credos alheios ou da ausência deles, uma feliz páscoa só porque sim! É que, dizem os cristãos através de S. Paulo, "se Cristo não tivesse ressuscitado seria vã a nossa fé", e como nada disto, nenhum exercício mental, de retórica ou de erudição, chegará alguma vez ao conhecimento de Deus, é uma vez mais a experiência humana da dor e da responsabilidade e exigência do Amor, que talvez nos façam ver nele o próprio Deus, encarnado em Cristo, e se tivermos humildade suficiente no nosso próprio confronto entre dúvida e fé, talvez comecemos a entender melhor que, de facto, somos mesmo muito mais limitados do que pensamos, e que perante isso nem sempre basta dizer "existe" ou "não existe", porque também o sol se esconde atrás de espessas nuvens, e o mistério do universo jamais chegará ao entendimento da minha razão.

Quando a dúvida surge com a naturalidade do respeito, quando percebemos que o diálogo ecuménico é um fortíssimo passo no assumir de que Deus não é exclusivo de nenhuma religião, de que a ciência é a ciência e Deus é Deus e a fé é a fé, estamos já no caminho desse percurso único e pessoal em que todos valemos o mesmo, em que não existem condenados ("somos limitados, a nossa liberdade é pequena e muito condicionada - então, como é que uma liberdade condicionada pode determinar uma vida eterna falida?") mas onde existe a responsabilidade individual e colectiva, onde o maior pecado é simplesmente não amar (os outros e a nós mesmos), e assim perceber melhor a vida de Cristo, e quem sabe ter a sua capacidade de ser um verdadeiro pedagogo e psicólogo, pai, amigo, irmão e confidente, num caminho como o que lhe conhecemos, onde  amor e liberdade se confundiam numa vida que muitos celebram, numa Páscoa cujo significado vai além de qualquer metafísica ou elaborados argumentos, nesse processo único de caminhada individual que se quer alegre e realizada tanto quanto possível, mas também "vivida" na espiritualidade do que somos, ao encontro das certezas que só a dúvida desfaz...