23.10.22

DA VERDADEIRA GRANDEZA

(Por motivos óbvios, excepcionalmente, a foto não é minha.).

 Não valemos mais do que ninguém, e ao ver esta foto - o bispo emérito Casaldáliga de S. Félix de Araguaia, defensor do povo indígena -, a beijar a mão de um nativo (como Cristo fizera, lavando e beijando os pés aos apóstolos que, naturalmente, se achavam indignos de tal gesto pelo mestre) -, veio-me à mente o termo grandeza! Porque, efectivamente, não somos mais do que ninguém, ainda que achemos que sim.

A grandeza está nos que amam, nos simples, nos que conseguem reconhecer a sua justa medida, sem se diminuírem nem se acharem melhores do que são. A grandeza está no sentido crítico sem o tornar um julgamento; no ouvir as partes sem se ficar apenas com uma versão, e isto é grandeza porque é justiça, independentemente das afeições e preferências; no dar crédito ao outro pelo que é, e não pelo que tem; no sabermos descortinar a maledicência, para a anular e não alimentar.

A grandeza está também no carácter, em não consentir subtis enganos, sob a capa de um inocente desabafo; em dar sem fazermos notícia disso; em elevar quem não recebe mérito, mas tem muito mais valor do que tantos idolatrados sociais. Como este bispo reformado, que beija a mão do indígena, porque tem a mesma dignidade, independentemente do título.

A grandeza está em cair, sabendo que se levantará; está em aceitar a provação, sem culpar o outro; está em conseguir levantar-se porque teve a humildade de pedir ajuda, e não a sobranceria de pensar que não precisa de ninguém, num infantil orgulho, ou a atitude inversa de se vitimizar, para não assumir a parte que lhe cabe ou que a vida lhe deu.

A grandeza está em saber que os amigos são demais importantes, porque a amizade é um amor sem o qual cresceríamos mancos, mas também em ter a noção de que mesmo que nos deixem, ou sorrateiramente se afastem, até ficarmos só com cinco, dois ou nenhum, o nosso valor dependia de nós.

Só somos justos, quando sentimos por nós, e não pelo que ouvimos o outro sentir, já que o faz em nome do ego, e não de um verdadeiro acolhimento ao Outro. Não é preciso muito para um manto de intenções nos toldar a justiça com uma aparente insuspeita verdade, de alguém que, afinal, apenas pretende, através de nós e com doces e simpáticos gestos, fazer cair ou manchar alguém, metastizando, como quem se mostra inocente, o maior número de incautos numa envenenada relação.

É aqui que precisamos saber de que somos feitos, que valores, afinal, nos guiam, ou seremos nós os portadores do mal que corrompe. Sem um sentido autocrítico, facilmente nos vergaremos à primeira opinião, num contágio de cumplicidade consentida, que, inevitavelmente, maculará o outro, não porque houvesse quem fosse maldicente, mas porque nós o permitimos ser. Inseguros dos nossos valores, fomos atrás das primeiras falácias travestidas de inocência, acabando, afinal, por sermos nós a legitimar o mal que, de outra forma, ficaria apenas com quem o queria perpetrar.

Ser grande, é vermos o todo e não a parte; é termos coragem suficiente para denunciar, pelas acções e pelo exemplo, que não faz mal quem quer, mas quem permite que esse outro o faça... Ser grande, é vestir de nobreza a alma com que vamos ao encontro do Outro, independentemente das roupas andrajosas, da condição social, ou do que nos tenham dito.

A grandeza está em sermos nós mesmos o filtro do mundo, e não um filtro duplo, que impede por um lado o que escoa por outro. Só os grandes se "curvam" e simbolicamente ajoelham, perante o que outros não têm a pureza para conseguir ver.

O bispo que beija a mão ao nativo, não o reconhece como rei ou senhor, como melhor ou pior, mas pela dignidade que tem. Porque o bispo sabe, que, por baixo do título, só tem o nome, e que o nome apenas vale, se tiver qualidade humana. E quando lhe falaram mal do indígena, o bispo manteve-se puro de intenções, e, em vez de o julgar, foi, ele, mesmo, ao seu encontro, e quando um coração sincero se abre, o outro reconhece nele um pendor que não sabia exisitir.

Ser grande, é apanhar uma carga de água até fazer um raio de sol, sem culparmos ninguém ou maldizermos o mundo por isso; é suportar com maturidade a solidão e o fracasso, o abandono e a exaustão, e com os pés feridos na noite do ser, chegarmos ao cume onde o sol desponta, e de novo sorrirmos, ao vermos ao longe alguém como nós...